domingo, 20 de setembro de 2009
As fases de Ana
Deu-se como a mãe de Ana previra, como já havia acontecido antes, Ana simplesmente se aborreceu e parou de dar, de se dedicar, deixou de ser a mulherzinha de contos de fadas e começou a cobrar retribuição por seus gestos. Isso sempre deixava os homens bastante confusos e ressentidos, causando o afastamento.
A fase seguinte era "a coitada". Luísa chamava assim - "encosto de coitada" - à entidade que tomava conta do corpo de Ana nessas épocas. Uma entidade chorosa, despenteada, anoréxica... uma zinha que dava a impressão de que não sobreviveria ao rompimento, que se partiria em vários pedaços. A zinha deixava todos preocupados, inclusive a própria Ana que no fundo temia não sobreviver a uma fase dessas. Então, assim como viera, a coitada desaparecia; o fato que dera origem à sua chegada passava a não ter mais importância e Ana mergulhava de cabeça em outro projeto que podia ser um cachorrinho, um desfile de escola de samba, um espetáculo de balé, uma pós-graduação, um curso de línguas ou um novo namorado complicadinho. Ana já perdera a conta de quantas viradas daquelas ocorreram em sua vida.
Quando a raiva começou a ocupar o lugar da tristeza, com a qual se empalara durante semanas, Ana tinha as unhas pintadas de vermelho e vestia uma camisolinha de seda preta. Ao passar em frente ao espelho do banheiro achou-se bonita e atraente, embora um tantinho desgrenhada como costumava ser sua aparência ao acordar. Pensou que aquele homem era mesmo um insubordinado mal-agradecido e que definitivamente não a merecia. Pensou que aquela imagem que o espelho refletia combinava com a de uma escritora. Por algum motivo lembrou de Meryl Streep em "She-Devil", com seus chapelões, vestidos diáfanos e ar de heroína romântica. Pouco importava se a personagem levasse a pior no final do filme, era só uma questão estética.
Foi quando munida de uma xícara de café sentou-se em frente ao micro e começou a digitar a primeira frase de seu livro, com cuidado para não estragar as unhas. Já podia ver "o homem da minha vida" entrando cabisbaixo e arrependido em alguma livraria do leblon onde ela estaria autografando seu livro, com um ar um tantinho etéreo dentro um belo vestido cor de salmão e sandálias altíssimas, sorrindo modestamente para imprensa e piscando seus lindos olhos perfeitamente maquilados. Não tinha dúvida de que o livro sairia, como todos os projetos em que se empenhava. A coitada subira e Ana estava de volta, a boa e velha Ana de sempre!
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
Maria
Quase quarenta anos depois veio aquele sonho esquisito. Havia deixado o livro que ele lhe dera no quarto da pousada. Alguém viera avisar quando já estava partindo. O livro, precisava ir buscá-lo, mas não conseguia mais achar o quarto. É o quarto 72, disse alguém. Foi quando percebeu que estava acordada repetindo aquele número. Sempre tivera péssima memória pra números e repetia com o intuito de decorar.
Passou o dia paralisada, pouca coisa conseguia encontrar no passado, o passado não era mais, havia apagado, não tinha boa memória. Quis desistir do livro, esquecê-lo, deixá-lo junto com Maria, mas a música não saia mais da sua cabeça "... a sua imagem sempre comigo vai...". A música e aquele aperto.
domingo, 13 de setembro de 2009
Desproporcional
Além do medo, outro sentimento chegou muito cedo. Foi por causa da tia, aquela que morava com eles desde que conseguia se lembrar; a tia que a fazia rir. Não se ria muito naquela casa. Os pais não eram felizes e a alegria daquela tia, a juventude, a liberdade, eram quase uma afronta. A tia lhe dera aqueles livros com gravuras coloridas, aqueles que ela fingia ler enquanto inventava histórias; a tia a fazia rir. Um dia eles se foram, mudaram de cidade, pra muito longe, mais de um dia de estrada, a tia ficou. A menina tinha quatro anos então e descobriu que mais infernal que o medo era aquela falta que doía na alma e nos ossos. Sequer sabia que a falta tinha nome, um nome até bonito pra um sentimento tão doído - saudade.
Era uma menina franzina e pálida com uma cabeça um tanto desproporcional para o corpinho, uma cabeça que pensava e sentia coisas de gente grande, mas com um vocabulário ainda insuficiente para falar sobre aquilo... então chorava... Está de manha por que? Engole esse choro e come, ninguém morreu, engole o choro agora que eu to mandando! Mas como engolir um choro que não cabia naquele corpo? Como engolir alguma coisa se estava tudo tão cheio? Se transbordava? Como explicar? Só era capaz de dizer eu não consigo, eu não consigo... Foi nessa época que a menina foi ficando azul, depois transparente, então desapareceu. Seu corpinho raquítico nunca foi encontrado. Falava-se que havia caído no poço, que havia sido levada por ciganos e até devorada por uma matilha de cães abandonados que vagavam pela cidade e que, de vez em quando, faziam sumir alguma criação dos quintais. Mais ou menos na época do sumiço a cidade ouviu pela primeira vez aquele choro de origem indefinida, um choro de inundar, de afogar, impossível de ser calado com gritos, macumbas, missas, tiros ou explosões. Um choro torturante que durava e durava, só restando à cidade tapar os ouvidos e esperar que cessasse ao menos temporariamente.
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
Olhos de vidro
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
Cristina
Estavam em um hotel fazenda. Durante a manhã haviam caminhado pelas redondezas, conhecido alguns dos hóspedes e passado boa parte de hora na beira do lago tecendo várias teorias divertidas a respeito do comportamento de um bando de patos selvagens. Os menores nadava em torno de um pato maior, o qual mergulhava obsessivamente a cabeça na água deixando a cauda na vertical, provocando em seus observadores muitas risadas. Durante a tarde haviam participado da leitura de alguns capítulos do livro de um dos hóspedes habituais, livro no qual se desenrolava a história de um suposto assassinato ocorrido na fazenda e cujos personagens, hilários, baseavam-se livremente nos demais hóspedes.
Fora um dia agradável e agora à noite abrigavam-se do frio em uma das áreas comuns onde o marido tocava e ela assistia, sentada em uma das cadeiras que ali haviam sido dispostas pouco antes do início da noite. Tomava uma caipirinha de maracujá e olhava, encantada, o homem que amava em uma de suas atividades prediletas, entreter a platéia com a sua música.
Após reparar na moça voltou-se ainda algumas vezes, mas não tornou mais a vê-la até o dia seguinte, quando, após o passeio matinal os hóspedes reuniram-se em círculo, sentados próximos à piscina, tomando drinques e revezando-se no papel de contar histórias divertidas, de piadas à poemas de cordel. A moça reaparecera então, dessa vez ao lado do rapaz alto de cabelos pretos, argola na orelha e um sorriso simpático. Está acompanhada, pensara então... como são jovens...
O almoço foi servido na sede da fazenda, casa construída ainda no século 19 e perfeitamente restaurada. Estavam em uma sala enorme que os proprietários mobiliaram com mesas e cadeiras de madeira pesada, escura. Por todo o lado se viam objetos de prata, desde os castiçais até os açucareiros. Pelas mesas estavam dispostos jogos americanos de renda, linho bordado ou croché, tudo dentro de uma atmosfera antiga. Pelos janelões abertos podiam ver a paisagem tranquila e ensolarada. Pois foi nesse almoço, mais precisamente na hora da sobremesa, que a moça puxou conversa. Perguntou algo sobre o pavê e após ouvir a resposta emendou em outro e outro assunto. Enquanto falava dirigia-lhe aqueles olhos vivos e ajeitava os longos cabelos, ora fazendo um coque sem grampos que rapidamente se desfazia, ora puxando os fios para um lado e enrolando-os com as mãos, de perto da raiz até as pontas, penteado esse que também não durava muito. Contou-lhe que se chamava Cristina, morava em uma cidade serrana, era artista plástica e estava envolvida em um projeto de reciclagem de óleo de cozinha. Quando a babá trouxe a menininha, que devia ter por volta de um ano e fazia caretinhas para comer a banana amassada, Cristina estava empenhada em explicar o projeto. Continuou explicando enquanto tentava convencer a neném a comer a sobremesa. Havia conhecido um padre, não sou religiosa, frisou, mas ele fazia um trabalho bacana de recuperação de dependentes químicos. Surgira a necessidade de arranjar ocupação para os dependentes, ocupação que lhes trouxesse alguma renda. A idéia era fabricar sabão a partir de óleo usado. A moça já havia conseguido apoio para iniciar o projeto e agora procurava uma forma de produzir também sabão um pouco mais refinado.
Enquanto ouvia a moça, observava seus olhos, cabelos, gestos, sua maneira de falar e alimentar o bebê, sua vitalidade... Olhava fascinada para aquela moça que falava de sí, dos seus planos, não do marido sentado ao lado nem do bebê que alimentava. Cristina, por mais amorosa com a familia que parecesse, e parecia, estava encantada com o que conseguia produzir. Aquilo lhe provocou uma saudade doída, uma nostalgia da época em as coisas apenas haviam começado a ficar confusas, difíceis. De quando ainda havia pouco tempo que tomara o caminho que para ela se revelaria errado.
Mais tarde, enquanto esperava o marido sentada no alpendre, viu Cristina passar de mochila nas costas. Quando a moça se voltou e, de pé, no gramado, iluminada pelo sol que se esvaia acenou para ela, despedindo-se, percebeu que talvez houvesse encontrado a trilha que a levaria para além da dor, para além da falta de sentido contra a qual vinha lutando há tantos anos. Cristina lhe havia fornecido uma pista que talvez lhe permitisse encontrar uma outra moça, uma que andava esquecida dentro de sí, em meio ao vazio. A moça que um dia fez tantos planos, que projetou um futuro feliz, rico em experiências, produtivo. A moça que desapareceu tentando viver o que não lhe pertencia, tentando ser feliz por intermédio de outrem. Teve esperança de poder encontrá-la, de que ainda desse tempo de dar-lhe a mão, ajudá-la a encarar seus erros e a retomar o caminho, do ponto em que havia se desviado, no tempo que fosse necessário, sempre em direção à luz. Teve esperança de ainda poder transformar aquela moça adormecida em uma mulher feliz, de olhos vivazes, uma mulher que não precisasse seguir o olhar de ninguém, por estar de olho em seu próprio caminho.
Vou te passar um e-mail prometeu Cristina. Ela sorriu agradecida.
sábado, 15 de agosto de 2009
A mulher morta
Sentia-se morta. Nascera morta e provavelmente morta estivera ainda no útero. A mãe costumava repetir que não comia nada quando estava grávida. Não havia demanda de alimento para um feto morto, pensava ela agora.
Sua vida fora formada de pequenas ilhas de entusiasmo em um imenso mar de solidão e tédio. Tentava. Há anos que tentava. Costumava ter esperança cada vez que a vida lhe trazia uma surpresa; nessas épocas tornava-se sorridente, ágil, interessante. Muitas vezes forçara situações, trabalhara ardentemente para obter o que muitas pessoas tinham de graça, apenas por estarem vivas; forçara um pouco de vida para dentro de si como se empurra colheradas de sopa pela goela de um doente, mas a solidão e o tédio acabavam por alcançá-la, inexoravelmente.
Uma mulher morta dissera ele, olhando-a. Ela calara. Não havia o que dizer. Ele havia percebido o que ela tentara desesperadamente ocultar durante todos aqueles meses de viagens, livros, filmes, programas divertidos, tudo o que pudesse gerar assunto, movimento. O que ela tentara desesperadamente ocultar para poder sorver ainda um pouquinho do calor, da energia, do ar morno que daquele amor exalavam.
Agora ele já sabia e a ela só restava voltar ao porão escuro e continuar tentando encontrar dentro de si, daquele imenso vazio que era o seu interior, um sopro qualquer daquilo que outros tinham facilmente, naturalmente.
sábado, 8 de agosto de 2009
Joana e as horas
As amendoeiras mudavam de cor. Sempre um belo espetáculo pensava.
Havia sido uma semana esquisita: por vezes a ansiedade fora tanta que parecia que iria se afogar, tomara um ansiolítico, tomara e continuara tomando nos dias subsequentes. Joana detestava drogas, havia chegado àquela idade encarando todos os sentimentos bons e ruins, um por um, mas aquela havia sido uma semana estranha. Fumara um maço de cigarros em um dia. Joana não fumava. Havia bebido um monte, Joana que não bebia.
Agora olhava pela janela o dia amanhecer e pensava nas horas que seguiriam arrastadas, torturantes, horas de vazio, horas de saudade. Joana amara. Amara completamente, incondicionalmente, inteira, como há muito não ousara.
Agora eram as horas, a dor no peito, as lágrimas densas.
Ainda era muito cedo, madrugada, tomou outro ansiolítico e voltou pra cama, precisava distrair as horas.
terça-feira, 4 de agosto de 2009
Uma manhã
sábado, 1 de agosto de 2009
Ana e a vida
Eram vários demônios, de alturas, cores, formas e idades variadas. Não se mostravam o tempo todo. Algumas vezes chegava a achar que o tempo a havia livrado deles, mas então voltavam com suas risadas histriônicas, seus dentes perfurantes, suas garras. Tinha de estar alerta e ainda assim apareciam. No combate corpo a corpo costumava perder, pois eles sussurravam em seu ouvido, conheciam cada fragilidade sua, cada medo e trabalhavam para ampliá-los até que ela, exausta, perdesse o controle. Aprendera que o mais seguro era evitar que se aproximassem, para que não pudesse ouvi-los. Tentava mantê-los sob vigilância, à distância. Conseguia com superficialidades. Os demônios não se interessavam por superficialidades. Mas bastava que criasse intimidade com alguém ou algo para que eles se aproximassem, ávidos, sedentos, excitados. Por muito tempo escolheu a solidão e o desinteresse para mantê-los em uma zona de segurança, porém acabou percebendo que se não se excitavam com a solidão e o desinteresse, era apenas porque sabiam que a solidão e o desinteressa acabariam por matá-la de qualquer forma. Foi quando novamente escolheu viver. Perde muitas batalhas...
quarta-feira, 29 de julho de 2009
Ofélia
No mais, rendas, frufrus, torneados. Coisas usadas, dessas que trazem histórias desconhecidas.
Costumava se achar velha demais, desde criança se achava velha demais, lembrava-se de olhar suas mãos quando ainda não chegara aos oito anos e ver mãos ossudas, enrugadas, diferentes das mãozinhas rechonchudas com covinhas na base dos dedos. Não gostava das suas mãos. Com o tempo parou de pensar nisso, nas coisas que não gostava em si para pensar em figurinos, jóias, penteados e louça de outra época. Veio dai o gosto por museus.
Na adolescência gostava de criar histórias com donzelas pálidas, de longos cabelos e longos vestidos, que conviviam com fantasmas em velhas casas de fazenda com móveis pesados e escuros ornamentados com palhinha e brocados. Velhas casas cheias de quartos que não eram usados há décadas, mas que ainda guardavam mobilia, livros, roupas e objetos dentro de baús embolorados.
Adulta era antiga também no amor, dessas que gostam de cuidar dos homens, de incentivá-los a crescer, de vibrar com seus progressos, consolar seus fracassos, trazer-lhes doces e oferecer escalda-pés, como talvez fizesse sua avó, ou que sabe sua bisavó! Talvez por isso mantivesse com tanta dedicação o casamento com aquele que havia sido seu primeiro namorado e cuja companhia preferia a qualquer outra. Talvez por isso o marido houvesse enriquecido durante os anos de casamento, enquanto ela parecia apenas colecionar lindas e delicadas tacinhas de licor, garimpadas em brechós, que decoravam a cristaleira na sala de jantar. Nos últimos anos, além dos brechós, adquirira o hábito de vasculhar os pertences do marido, o que lhe permitia colecionar também evidências de que este lhe era e talvez sempre houvesse sido infiel.
Em outra época teria sofrido de tuberculose, mas os tempos estavam mais para depressão...
segunda-feira, 27 de julho de 2009
Incontrolável
domingo, 26 de julho de 2009
Paternidade
Havia saído de fininho, como adquirira o hábito de fazer pela manhã. Levara a pasta e o violão.
Ela levantou quase imediatamente, embora tenha demorado bem mais que o necessário em frente à pia do banheiro observando sua aparência, olhando a cabeleira revolta e o rosto descansado. Lavou os olhos ligeiramente borrados pelos restos da maquilagem da noite anterior e escovou dentes com a escova que conquistara seu lugar no armário em cima da pia. Ao sair do banheiro esticou lentamente os lençóis e afofou os travesseiros com cuidado. Deu ainda uma ou duas voltas pelo quarto antes de respirar fundo, abrir a porta e dirigir-se à sala . Tentou disfarçar a tensão que sempre sentia quando o medo de estar invadindo um momento íntimo demais brigava conta a vontade de estar perto, no mesmo cômodo que ele. Pode vê-lo assim que alcançou o final do corredor: dedilhava e escrevia, escrevia e dedilhava, de costas, em frente ao console onde a folha de papel repousava entre duas pequenas estátuas; um busto de Beethoven e a Pietá.
Tomou rápida e silenciosamente o corredor que levava à cozinha, tentando agir com naturalidade. Quando voltou à sala trazia uma xícara de café sem açúcar e o jornal do dia que havia resgatado em frente à porta, em cima do tapete, onde era deixado ainda de madrugada.
Ele continuava absorto quando ela se instalou no sofá em um posição pouco usual, de lado, com as pernas em lótus, virada para a mesinha de canto onde pousou a xícara enquanto abria o jornal e tentava se interessar por todos aqueles caracteres sem sentido, mas com a atenção voltada para o homem que trabalhava.
Quando ele se aproximou o café já havia terminado e o jornal havia sido quase completamente vasculhado, embora nada do que houvesse lido tivesse força suficiente para competir com os acordes que nasciam enquanto lia. Do jornal não ficara nada, não era ali que ela estivera durante aqueles minutos em que seus olhos seguiam os símbolos impressos, apenas símbolos impressos que não tiveram força suficiente para se transformar em linguagem.Como já se tornara hábito dos dois, mais um deles, foi a primeira a ouvir a nova canção; a primeira a ouvir a canção que falava de canções, de desejo pelas canções, de toda a sensualidade contida no ato de criar uma melodia, uma letra, de recebê-las cruas como dois lados de um único pedaço de pedra bruta, de alisá-lo para sentir a textura, as reentrâncias, de burilá-lo, de esculpi-lo. De todo o desejo, toda a entrega, toda a paixão contida naquele tempo dedicado a receber a melodia, a compreendê-la, ouvir seus desejos, satisfazê-la moldando-a com a poesia que lhe era gêmea. Então compreendeu a inquietação que sentira em outro momento como àquele, era a inquietação que sente todo amante quando observa o amado totalmente entregue a um ato do qual, embora fascinante, não pode participar. Mas compreendeu também que lhe cabia um papel, sempre coubera, embora ainda não tivesse percebido conscientemente; o de delicadamente, carinhosamente incitá-lo a separar-se da criação para que ela pudesse seguir seu caminho na vida que acabara de ganhar.
sexta-feira, 24 de julho de 2009
Leveza?
Comprara-o naquela tarde, em uma dessas lojas de quinquilharias usadas. Já imaginava o bule fumegando vapor de café fresquinho, pousado sobre a toalha de renda na mesa da sala, próxima à janela. Imaginava-se saboreando o café de olhos fechados, sentindo no rosto o calor gostoso da luz que entrava filtrada pelas folhas de uma amendoeira brincalhona. Achara-o lindo, com suas cores verde e branca, ornamentado com ramalhetes dourados; desses bules bojudos na base com bico elegantemente recurvado e asa delicada. Cerâmica da década de 60, made in Brazil. Um encanto!
Leveza... nunca perca a leveza...
Porém no fim da tarde chegou a gripe, ou seja lá o que fez com que o rapaz ardesse sob seus olhos preocupados. A febre e aquele medo antigo, de não estar a altura da responsabilidade, de não ser capaz. Jamais superara aquele medo que nascera, ou que pelo menos se manifestara, no momento da chegada do rapaz, junto com com o líquido que escorrera pelas suas coxas antes mesmo de perceber a dor da primeira contração. Acostumara a amordaçar aquele sentimento para que não precisasse pedir muito, para que não precisasse pedir quase nada. Para ser sempre interessante, divertida, leve. Acostumara a amordaçar aquele sentimento junto com tantos outros, incômodos, que encarcerava dentro do peito e que só gritavam à noite, nas horas de insônia, quando, abraçada aos travesseiros, se enrolava no edredon como em uma camisa de força.
Com a febre veio o medo, a solidão e a consciência da necessidade de dividir também aquilo. A necessidade de ouvir a voz tranqüilizadora e afetuosa do homem amado; porque amava. Veio a febre e com ela a necessidade de ousar uma nova etapa, de ousar algo que evitara fazer durante os últimos anos: pedir, quase exigir o que dava com prazer, o que achava natural dar.
segunda-feira, 20 de julho de 2009
Invisível
Não lembrava bem quando aquilo começou, devia ser muito pequena! A... falava sem parar, entoava uma cantilena, uma ladainha, engrenava uma corrente de lamentações, cantava a infância que não teve, de como tinha de fazer tudo sozinha, da vontade de sumir! -Um dia eu sumo e vocês não me encontram mais! Aquilo ia crescendo; a irritação, a indignação, o tom de voz... nesses momentos era melhor não chamar a atenção.
Invisível, dizia C... Devia ser assim que aquilo começou, embora não lembrasse bem!
...
Ele compunha: deitava, levantava, andava, pegava o violão, largava o violão, voltava a pegar e dedilhava insistentemente um trecho da música, se debruçava sobre o instrumento e escrevia algo em uma folha de papel. De onde estava não conseguia ler o que ele escrevia. Enroscada no canto da cama, abraçada em travesseiros, tentava respirar baixo e conter os ruídos incômodos do seu estômago. Por vezes cochilava, embora sem distrair daquele corpo que trabalhava. Sem distrair do homem, da pele, veias, pêlos, cheiro; daquele corpo que se movimentava febrilmente, apaixonadamente. Por vezes ele se afastava do quarto e ela ouvia atenta os passos e o barulho do papel sacudido nervosamente. Muito, muito atenta media a distância pela intensidade dos sons, para se certificar que ele ainda estaria dentro da zona de segurança, o perímetro que permitiria que o alcançasse com um salto e alguns passos rápidos, para impedi-lo de partir... Impedi-lo de partir!
Então ele voltava... por vezes seus olhares se encontravam e ela esboçava alívio em um discreto sorriso, discreto o suficiente para não perturbá-lo.
Você não sufoca, disse C... no dia em que o pranto a encontrou fora de hora e de lugar. Pensava nas palavras de C..., palavras que desde então repetia como um mantra, como uma prece, para acalmar o terror que sentia de que passos levassem o calor, o sentido, o amor; pensava nas palavras de C...