Observação: Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais terá sido (ou não) mera coincidência!

domingo, 26 de julho de 2009

Paternidade

Havia saído de fininho, como adquirira o hábito de fazer pela manhã. Levara a pasta e o violão.
Ela levantou quase imediatamente, embora tenha demorado bem mais que o necessário em frente à pia do banheiro observando sua aparência, olhando a cabeleira revolta e o rosto descansado. Lavou os olhos ligeiramente borrados pelos restos da maquilagem da noite anterior e escovou dentes com a escova que conquistara seu lugar no armário em cima da pia. Ao sair do banheiro esticou lentamente os lençóis e afofou os travesseiros com cuidado. Deu ainda uma ou duas voltas pelo quarto antes de respirar fundo, abrir a porta e dirigir-se à sala . Tentou disfarçar a tensão que sempre sentia quando o medo de estar invadindo um momento íntimo demais brigava conta a vontade de estar perto, no mesmo cômodo que ele. Pode vê-lo assim que alcançou o final do corredor: dedilhava e escrevia, escrevia e dedilhava, de costas, em frente ao console onde a folha de papel repousava entre duas pequenas estátuas; um busto de Beethoven e a Pietá.
Tomou rápida e silenciosamente o corredor que levava à cozinha, tentando agir com naturalidade. Quando voltou à sala trazia uma xícara de café sem açúcar e o jornal do dia que havia resgatado em frente à porta, em cima do tapete, onde era deixado ainda de madrugada.
Ele continuava absorto quando ela se instalou no sofá em um posição pouco usual, de lado, com as pernas em lótus, virada para a mesinha de canto onde pousou a xícara enquanto abria o jornal e tentava se interessar por todos aqueles caracteres sem sentido, mas com a atenção voltada para o homem que trabalhava.
Quando ele se aproximou o café já havia terminado e o jornal havia sido quase completamente vasculhado, embora nada do que houvesse lido tivesse força suficiente para competir com os acordes que nasciam enquanto lia. Do jornal não ficara nada, não era ali que ela estivera durante aqueles minutos em que seus olhos seguiam os símbolos impressos, apenas símbolos impressos que não tiveram força suficiente para se transformar em linguagem.Como já se tornara hábito dos dois, mais um deles, foi a primeira a ouvir a nova canção; a primeira a ouvir a canção que falava de canções, de desejo pelas canções, de toda a sensualidade contida no ato de criar uma melodia, uma letra, de recebê-las cruas como dois lados de um único pedaço de pedra bruta, de alisá-lo para sentir a textura, as reentrâncias, de burilá-lo, de esculpi-lo. De todo o desejo, toda a entrega, toda a paixão contida naquele tempo dedicado a receber a melodia, a compreendê-la, ouvir seus desejos, satisfazê-la moldando-a com a poesia que lhe era gêmea. Então compreendeu a inquietação que sentira em outro momento como àquele, era a inquietação que sente todo amante quando observa o amado totalmente entregue a um ato do qual, embora fascinante, não pode participar. Mas compreendeu também que lhe cabia um papel, sempre coubera, embora ainda não tivesse percebido conscientemente; o de delicadamente, carinhosamente incitá-lo a separar-se da criação para que ela pudesse seguir seu caminho na vida que acabara de ganhar.

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