Observação: Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais terá sido (ou não) mera coincidência!

sábado, 13 de janeiro de 2018

Chuva na roseira

Foi na tarde antes da chuva. Ainda estava quente quando ela chegou apertando o peito e a garganta, fazendo doer à beira do insuportável, irrompendo intempestivamente, barulhenta, de assalto. Tão indesejada, temida, e detestada, a saudade. E íamos mergulhando novamente no escuro da falta e da desesperança. Porém alguma de nós queria tentar algo diferente que deve ter lido ou ouvido em algum lugar, já que andávamos buscando conhecer formas de se lidar com a visitante. Vamos ouvi-la, disse. Vamos observá-la, essa perniciosa. Já faz tanto tempo que ela não perde uma oportunidade de nos atacar, tantos anos. Mas não é nossa culpa. Quando apareceu pela primeira vez éramos ainda tão pouco experientes e não havia quem pudesse nos orientar a ouvi-la. Ela sempre chega assim, dolorida, então por puro medo aprendemos a fugir dela, fugir sempre, de qualquer forma, sem refletir sobre o caminho, apenas impulsos de fuga. Mas já estamos tergiversando aqui nessa conversa, voltemos à visita. Como estava dizendo, uma de nós decidiu que dessa vez haveríamos de nos conter e prestar atenção nela. Do que ela reclamava? Por que gritava tanto? O que dizia? Apenas seguramos a linha, nós outras, e a observamos. Ela girava e girava fazendo ventania, trovoada e fogo. Girava do passado para o futuro, do futuro para o passado. Andava apavorada com o presente, a pobre, detestava ter perdido o que passou, detestava a sensação de que qualquer construção presente viraria passado no futuro, se desintegraria. Estava apavorada com a ideia do paraíso perdido, porque qualquer paraíso seria inevitavelmente perdido. Recusava o presente, nessa recusa ora brigava, bufava, girava, gritava e esperneava, ora quedava sem forças apenas para recomeçar logo adiante. Não era bonito de ver. Era assustador. Mas como combinado apenas observamos. Foi quando começou a chuva, e o cheiro da chuva. Respiramos fundo bem devagar para sentirmos, para ouvirmos as gotinhas ritmadas, tamborilantes, frescas. Por alguns momentos esquecemos a visitante, e quando a olhamos novamente ela estava em choque porque não fugimos, ela não precisava mais nos perseguir, não precisava mais espernear, foi parando aos pouquinhos de girar, foi parando aos pouquinhos, e sentia a chuva, e nos olhava, e assegurávamos que a chuva era boa. Suas pupilas foram normalizando, ela quedou em silêncio ali, no que estava acontecendo, a brisa, o cheiro, as gotas...