Observação: Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais terá sido (ou não) mera coincidência!

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Para outra pessoa talvez bastassa dar alguns passos, abrir a porta e dizer qualquer bobagem, mas nenhuma resposta a satisfaria. O que precisava não conseguiria com qualquer conversa casual.
Há meses não sentia essa dor, a dor que a acompanhava desde criança, e para a qual era cada vez menos tolerante. Era mais fácil antes, na época em que achava que a dor era uma parte indissociavel da sua existância, quando não conhecia outro estado; era mais fácil então. Mas veio o primeiro céu azul, o primeiro momento de paz: devia ter uns treze ou quatorze anos quando pela primeira vez o céu se tornou real, aquele brilho seco, aveludado, profundo, quando ela se viu envolvida pora alguma coisa morna, e sorriu. Demorou um pouco para perceber o que estava acontecendo, para perceber aquela ausência, a ausencia da dor, que a permitia ver o céu. Daquele momento em diante toda a sua vida fora uma luta constante por aquela ausência, e a dor se tornou cada vez mais insuportável, pois que se havia descortinado uma vida sem ela.
Não saiu do quarto, apenas voltou a dormir, a tentar dormir. Andava dormindo bastante esses dias para passar o tempo, na esperança que algum milagre do tempo trouxesse de volta a leveza.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Laura e a Bisca

Laura era uma bisca. Bisca no sentido normalmente utilizado para xingar alguém. Que boa bisca aquele fulano! No caso de Laura, ser uma bisca fora imposição da vida, pra quem acredita em destino, ou escolha, pra quem quase acredita em livre arbítrio. Ser uma bisca era a estratégia que Laura utilizava pra se proteger. Laura pareceria ingênua, de mente simples, até mesmo inofensiva, não fossem os pulsos de inteligência, como aqueles raios que surpreendem ao trazerem uma luz cegante, totalmente inesperada aos olhos acostumados ao cinza de determinados dias chuvosos, aqueles raios que subitamente atravessam nuvens, com promessas de estiagem, que não necessariamente acontece. Porem esses pulsos não eram frequentemente aparentes e Laura era subestimada. A princípio era subestimada naturalmente, mas aprendeu, ainda criança, a utilizar isso a seu favor. Passou a dissimular. Laura foi uma criança dissimulada. Dissimular virou o equivalente a uma tática de guerra, aprimorada ao longo dos anos. Com o tempo, além de esconder, desenvolveu a arte de mostrar o oposto. Foi quando apareceu Laura, a bisca!
A vingança preferida de Laura, a bisca, era puxar o tapete. Algumas vezes Laura se doou com sinceridade, mas uma sinceridade ingênua, por demais desconcertante para ser bem tolerada. A moça não lidava bem com a rejeição, e tinha uma tendência à melancolia como parte de sua personalidade. Nas horas de rejeição, geralmente causada por sinceridade mal empregada, era mais seguro permitir que Laura, a bisca emergisse. A Bisca era divertda, segura, admirada e invejada, embora profundamente infeliz. Paradoxalmente, a Bisca infeliz protegia Laura da depressão; provavelmente por possuir um tipo de infelicidade ativa, vingativa mesmo. A bisca surgia e virava, com inteligencia, o jogo a favor de Laura; mas não saia logo de cena, porque desconfiava que Laura não conseguia manter a vantagem. Temia que Laura rapidamente mostrasse o ventre, como os cães que reconhecem a superioridade alheia. Temia por Laura, então surgia, virava o jogo, e puxava o tapete. Gostava de ver tombos altos, quando mais altos mais divertidos - sua infelicidade precisava de diversão. Então mostrava os dentes, não para morder, para sorrir. Era sorriso o que a bisca deixava ao se retirar.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Kitty

Não me lembro a primeira vez que a vi, nem como nos tornamos amigas, mas lembro bem de seu rostinho dentuço, dos cabelos cacheados, dos olhos escuros, da baixa estatura e da sua forma de ver o mundo. Seu mundo era cheio de sinais, de significados ocultos. Uma simples peninha que entrasse pela janela era um presente de criaturas de mundos distantes, uma simples peninha, bem como uma conchinha na praia ou um pedaço de papel trazido pelo vento. Era cheia de mistérios, de histórias, histórias que inclusive enchiam cadernos que ela colecionava. Era boa aluna, sabia tocar aquelas músicas românticas no violão, músicas que eu adorava ouvir... "Na sombra de uma árvore", do Hyldon, coisa brega que eu adorava, e que adoro até hoje (...Larga de ser boba e vem comigo...) e que décadas depois me fez tomar uma decisão que mudaria minha vida... mas isso aconteceu décadas depois, então voltemos aos meus doze anos. Ela enchia minha imaginação com todos os amigos invisíveis, cujas atividades ela me descrevia e das quais me deixava participar. Adotava dietas esquisitas, ora não podia comer arroz, ora só podia comer arroz; tinha gestações imaginárias e inclusive uma filha, que se chamava Lua, e que andava pela casa, e costumava estar deitada no sofá justo na hora em que eu ia sentar, o que provocava um aviso aflito da mãe, fazendo com que eu interrompesse o movimento no último minuto e saltasse para não sentar em cima da criança. Criança bem ajuizada por sinal, porque minha amiga relatava as conversas que tinha com a "filha", conversas bem maduras para o nosso estágio de vida. Tinha a "Janela-que-dá-pro-morro", na época em que no morro havia verde, antes da chegada das balas traçantes, janela na qual nos debruçávamos aproveitando a primavera no rosto, enquanto cantávamos músicas dos Carpenters. Quantas alegrias me trouxeram aquelas cantorias de meninas debruçadas na janela! E tinha ainda aquela biblioteca fantástica, repleta de livros infanto-juvenis, dos quais eu me servia à vontade e que foram fundamentais em um período bem difícil da minha vida, mas disso já falei aqui em outra postagem, ou pelo menos do pouco que me lembro daquela época. Pois essa criatura morena de grandes dentes brancos que tanto alegrou a minha vida e enriqueceu a minha imaginação, essa criatura que me roubou a solidão e me deu um mundo cheinho de personagens, para que eu não me perdesse na dura realidade de pré-adolescente vivendo em meio a turbilhoes emocionais, pois essa criatura que eu amei tanto, bem cedo desistiu da realidade. Foi viver sabe-se onde e se tornou inalcançável. E eu nunca pude agradecê-la!

37°2 le matin

Hoje revi Betty Blue. Só havia visto uma vez, e lembrava de ter gostado demais do filme. Pois hoje revi e continuo gostando demais do filme!! Não sei se algum dos meus quatro leitores tem idade suficiente para ter visto Betty Blue, mas seria interessante que pegassem em uma locadora e vissem, nem que fosse por curiosidade. Curiosidade sobre uma época em que se utilizava máquina de escrever, e, principalmente, sobre uma época em que não era estranho que o companheiro trouxesse sentido às nossas vidas. Uma época em que não se cobrava que você se sentisse pleno e feliz consigo mesmo o tempo todo, uma época em que as pessoas sentiam como seres humanos, não como robôs anestesiados. Acho que estou meio amarga, acho que estou meio velha, acho que estou meio de saco cheio de toda essa saúde física e mental, de toda essa juventude e plástica perfeita, de todas essas atitudes politicamente corretas, de toda essa satisfação consigo mesmo que devemos aparentar atualmente. Fico com meu querido Fernando Pessoa: " Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?"