Observação: Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais terá sido (ou não) mera coincidência!

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Não funcionava como todo mundo, simplesmente não funcionava assim. Tentou porque andava cansada dos seus moinhos, cansada das trilhas tortas, cansada de inventar. Deu as costas ao que era e empenhou-se - como se empenhou - em fazer como o comum. Arranjou um desses caminhos asfaltados, sinalizados, e se perdeu. Anos perdida! Por algum tempo sequer se soube perdida! Não fosse o pássaro enfeitiçado de lobo, em uma noite morna, talvez houvesse morrido mais cedo. Mas era um pássaro paciente, com medo e amor bastante pra ser sinal, pra ser guia, ainda que também vagasse. Guia esquisito aquele, que apontava saia da estrada, feche os olhos, siga fora da trilha, fora dos trilhos, onde houver profundeza se lance, procure, encontre a criança, a adolescente, a mulher. Murmurarão confusões, procure dar sentido, confie, vá sozinha, a escuridão é toda sua, desbrave, seduza, conquiste a sua escuridão, faça com que a obedeça. De tempos em tempos estarei em uma curva, um pouco de calor, um pouco de descanso, mas a deixarei novamente só tantas vezes quantas necessárias para que aprenda a diferença entra amar e precisar. Até que descubra, que se descubra, pra que eu possa confiar, e então iremos onde nunca deveriamos ter saído.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Não se chamava Ismália, mas um dia duvidou! Não foi um desses surtos repentinos, nem uma dessas loucuras mansas que pioram. Foi gradual e pouco perceptível. Um conjunto de comportamentos aparentemente inocentes aglutinando-se ao longo dos anos, até que parecesse tarde demais! Desorganizada, diziam uns, ingênua, outros, sonhadora, pensava ela, obsessiva, apregoava alguém, imatura, suspirava outrem. Tinha essa teimosia, esse achar que estava certa sozinha, certa contra o comum, o estabelecido, certa contra a realidade percebida pela maioria. Não sabia se fora deixada sozinha aos poucos, na verdade acreditava ter sido sempre assim! Andava sempre espantada, tentando não se importar muito com o fato de não entender e não ser entendida. Na verdade nem precisava entender, porque tinha aquela coisa, a coisa que fazia com que se desviasse da colisão no último minuto, embora estivesse olhando para o lado oposto! A coisa que intuia o que pessoas precisavam, sem que elas dissessem, e que colocava nos olhos delas a surpresa que a tornava ainda mais surpresa, porque nunca entendia esses olhares. A coisa que a aprisionava a pessoas, apenas para libertá-las, para então ser deixada novamente só! Talvez tenha sido sempre louca, mas agora alguns olhares conseguiram atravessar a nuvem na qual se protegia. Ele atravessou. Ou por ser verão, ou por estar velha, ou por ter se desinteressado das distrações, talvez a coisa estivesse ficando fraca, talvez a coisa tivesse deliberadamente aberto o caminho, talvez por amor ele atravessou e ela pode ler LOUCA, e então teve a certeza abalada! Mas não voaria como Ismália, não ainda, por pura preguiça não faria nada. Talvez a nuvem se fechasse novamente e tudo fosse esquecido, tornara-se muito boa em esquecer; talvez o furo não fosse tão grande assim, ou talvez apenas se distraísse...

sábado, 25 de dezembro de 2010

Mal passava os olhos pela desordem e tornava a se concentrar no livro de fotografias. Era assim, comendo rabanadas, tomando café, perdendo-se nas imagens... assim era feliz e em paz. O livro fora presente de quem podia compreendê-la. Alma naturalmente gêmea, porque só adivinhamos o que sentiríamos. Deixava as cortinas fechadas, porque descansava do verão; da exuberância que não combinaria com a paz imperativa no momento. Andava em época de fotos em tons de cinza, de ouvir piano, de usar louças antigas... época de descanso de todo aquele muito que habitava além da janela. A bagunça do quarto ainda não a incomodava, porque sempre podia descansar os olhos no livro de Doisneau. Mais tarde talvez arrumasse tudo, mais tarde enfrentaria o azul cegante e os afetuosos sorrisos natalinos. Agora só queria inventar histórias para as suas fotos. Alguém a presenteara de Deus.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Era uma angústia tão antiga e tão urgente... Começou com aquela idéia estúpida de uma viagem em familia, idéia dada por ela mesma, que ousara subestimar o detalhe de que não era a sua familia. Dali para o velho sentimento de não caber fora apenas um pequeno atalho. Mais fácil quando separados, ou até mesmo em dois, mas todos reunidos criavam um conjunto que a desequilibrava, porque não era natural não lembrar-se que faltava alguém, alguém que não era ela. Sentiu-se isolada. Por algum motivo com raízes muito antigas, algum motivo bem incoerente, a fuga do sentimento de isolamento costumava ser isolar-se ainda mais, embora enroscar-se como um gato na poltrona, apenas para dormir em plena festa, não ajudasse muito em um prazo maior que a extensão do sono. Essas fugas costumavam vir imperiosas, mas não resolviam, sequer remediavam, apenas um pequeno descanso da situação. A época do ano também não era a mais propícia: todas as confraternizações, tanta simpatia, tantas gentilezas... definitivamente desejava afastar-se um pouquinho e só acordar quando tudo aquilo tivesse passado. Ir ao cinema só com ele, o seu amor, ir ao cinema de mãos dadas teria ajudado, sempre ajudava, aquela intimidade, aquele mergulhar em outros contos, aquilo teria aliviado muito, não estivesse ele nessa época, como a maioria, ocupado já o suficiente em lidar com os outros seus. Vai passar, pensava, enquanto respirava lentamente desejando que as noites agora fossem mais longas, para que pudesse ficar mais tempo coberta, no escuro, em silêncio. Se ao menos Helena pudesse falar um pouco, mas também ela estava tendo dificuldade em lidar com tanta interação familiar. Nada restava, então, que perder-se nas palavras, seu conforto, seu silêncio. Palavras amigas nas quais se escondia e desvendava.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Um tipo de cérebro, um tipo de gente diferente.
Um dia errou o caminho do trabalho por causa do gato. O miado insistente e o perambular do gato pelo carro. O miado do gato, o choro do bebê... Levara vinte anos para entender e saber explicar. Um dia teve de refazer diversas vezes uma trança porque uma pessoa amada perambulava a sua volta e tirando fotos. Os gritos de Nanda por alguma pergunta aparentemente tola que fizera, ou a exasperação da mãe porque fazia apenas uma coisa de cada vez... O bullying na infância, seus deslocamentos para aquele mundo onde permanecia inacessível de tempos em tempos... De repente tudo começava a se encaixar e a fezer sentido. E o alivio, bendito alívio em saber que não estava nada errado, que era apenas assim mesmo...

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Difícil dar qualidade aos olhos de Helena, apenas uma, que os descrevesse. Se inventasse uma palavra, uma apenas, para descrever seus olhos, soaria algo como "gorgeous", mas apenas pelo som, porque os olhos de Helena eram bem mais impressionantes que o significado da palavra "gorgeous". Não que Alberto lembrasse quando havia sido impressionado por eles, mas lembrava de ter reparado que haviam mudado de forma. Foi a primeira vez que reparara que os olhos de Helena mudavam de forma e de cor. Na ocasião de sua memória estavam redondos, quase inocentes, com pupilas dilatadas, mel riscado de verde. Alberto crê que amara Helena a partir de então.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Em 3 de setembro

Hoje, quando comemoro o seu nascimento, queria falar de pessoas incomparáveis, momentos inesquecíveis, mas não usarei palavras que não sejam minhas, porque nem mesmo os poetas portam meus olhos ou sentem com meu peito. Assim, comemoro seu nascimento de maneira egoísta. Mas ao mesmo tempo penso em como podem criaturas aprisionadas pelo modo como percebem o mundo serem mais que egoístas? Pois do centro de onde percebo, agradeço aos deuses por existir quem compartilhe sonhos, visões, dores, prazeres... alguém tão do meu jeito como se tivesse sido criado junto, ou para. Não sei como os poetas sentem, sei apenas que nasceria novamente tantas vezes quantas fossem necessárias para estar em mundos com você!
Hoje comemoro o seu nascimento como um dos eventos mais importantes da minha vida...

terça-feira, 29 de junho de 2010

Graças ao que me faz grata

Hoje me sinto tão grata por ser contemporânea, por viver em uma cidade cosmopolita, por ter podido escolher o companheiro que tenho... grata a todos os que trabalharam e que trabalham para a construção da sociedade laica, de direitos, em que vivo; grata aos meus pais, que por terem crescido nessa sociedade, puderam me dar ferramentas para a independência... Hoje queria ser crente para rezar uma novena, mas como não posso crer em um deus que não distribui suas graças com justiça, agradeço aos homens e mulheres que lutaram e que lutam por ela! Hoje quero ser digna dessas pessoas!
Hoje também me sinto grata pelo meu corpo saudável, pelo meu filho capaz, por ter conhecido o homem doce e forte que eu amo... Como não posso crer em um deus que não distribui suas graças com justiça, agradeço também ao acaso que me deu tudo isso.
Hoje quero ser digna dessa sorte!

(à Waris Dirie)

domingo, 27 de junho de 2010

Apenas amor

Claro que eu sei que escrevo melhor que isso, que essa música boba que nem é minha, claro que eu sei. É que por vezes, muitas vezes, desejei ser amada apenas; uma pessoa simples, sem muitos dons, sem muitos talentos, apenas amada. Quantas vezes, ainda na infância, me fiz de burra, como se a inteligência atrapalhasse, como se fosse mais fácil amar uma mente simples. Quantas vezes na vida adulta fiz o mesmo... Sim, poderia ter escrito algo muito melhor que essa música bobinha, nem sei de quem, e talvez recebesse de volta um bilhete de admiração, uma frase de admiração. Poderia sim, poderia. Mas o que eu realmente quero não se consegue com belas palavras, e é claro que isso você consegue entender.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Ao meu namorado

Hoje calo, eu que sempre tive tanta amizade com palavras...
Fica então com o meu silêncio, que quando alguém como eu cala é porque finalmente se deixou abraçar.

Certezas

Morrer é a certeza que me basta. Até lá, minhas incertezas sussurram nas noites de insônia que a felicidade é o caminho...

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Uma novela

Vou começar por aquela sexta-feira de abril, 9 de abril, em que ele entrou na cozinha dizendo que estava de carona. Claro que alguma coisa em mim percebeu imediatamente, estranho isso, chegar dizendo que está de carona...
Estava sentada na mesa da cozinha e ele entrou. João não estava lá, João nunca estava. Claro que percebia isso, que João nunca estava, mas tenho esse péssimo hábito, na verdade mais um cansaço, um cansaço de mudar alguma coisa.
João nunca estava, eu estava sentada na mesa da cozinha, ele entrou, percebeu que o olhava como se o reconhecesse, seus olhos se acenderam, eu vi suas acompanhantes, desviei o olhar, ele disse que estava de carona.
Quando eu era adolescente Irene, minha grande amiga, ganhou um irmãozinho que tinha olhos de vazio. Era um bebê bonitinho, mas olhava como se não visse. Anos depois descobriram que era autista. Não se sabia direito o que era, chegaram a culpar as mães por causar aquilo com a sua falta de afeto, houve até um filme, alguém se lembra? Nunca esqueci aquele olhar de vazio, posso vê-lo como se estivesse na minha frente. Vi esse olhar algumas vezes ao longo da vida, um olhar de nada. Marcos tinha um olhar semelhante, olhar de nada, só que os olhos se acendiam para mim. Vi seus olhos acenderem quando estava na cozinha e ainda os vi acenderem e apagarem algumas vezes naquele dia. Ângela também viu, chegou a comentar comigo que “os olhos dele brilham quando você está na frente”. O comentário veio depois de eu ter dito a ela que havia me apaixonado. Havia me apaixonado ali em algum momento, talvez ainda na cozinha, talvez na sala quando conversávamos, talvez quando eu percebi que ele me seguia pela casa, talvez mais tarde, no sofá, quando cantávamos...
Bom estar contando essa história, bom para que eu possa lembrar sempre o motivo de ter ignorado a estranheza da frase sobre a carona, de ter ignorado o comportamento nervoso de uma de suas acompanhantes, a que vinha logo atrás dele, de ter ignorado diversas coisas estranhas desde então. Bom para lembrar que essa ignorância, santa e muitas vezes deliberada ignorância me permitiu viver durante muitos anos uma grande história de amor com toda a felicidade, a tristeza, a paz, a intranquilidade; com todos os componentes de uma grande história de amor. Comecei por aquele dia de abril porque pretendo contá-la aqui, entremeada de outras postagens, de outros assuntos, pretendo contá-la aqui sempre que tiver vontade, a minha novela...
Não o vi durante os próximos meses, não com meus olhos, mas João nunca estava e aquele olhar que se acendia para mim, aquela conversa gostosa, aquelas mãos, me fizeram companhia até nos encontrarmos de novo.
Foi em junho, faltava uma semana para o dia dos namorados...