Observação: Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais terá sido (ou não) mera coincidência!

domingo, 29 de março de 2020

Notas sobre a ocupação da janela


Claro que antes de me ocupar em achatar essa curva de contágio eu já gostava de ficar em casa, sempre gostei. Mas com a semana no trabalho e os finais de semana divididos entre tarefas e pessoas, mal chegava na janela. Ia fechar as vidraças quando estava frio e abrir no tempo quente, e molhar uma ou outra plantinha pela manhã. Sempre olhava na direção da janela quando à mesa, no café da manhã, mais pelas plantas e por um ou outro gato que ali tomava sol, que por ela propriamente dita. O que há lá fora são pátios internos e edifícios. Apenas um dos apartamentos havia atraído a minha atenção uma vez. Foi quando pintei uma tela com as flores vermelhas que ocupavam três jardineiras brancas, mas sequer consegui ver quem cuidava delas. Então veio a quarentena, e muitas novidades. Um dia no café da manhã observei alguém sentada no batente - no terceiro andar do prédio oposto ao meu - tomando sol com uma xícara na mão. Nunca fui de fazer contato com os vizinhos, mas nesse dia cheguei até a minha janela e gesticulei. Depois de dois ou três dias falando com humanos apenas pela internet, e me deu vontade de socializar um pouco. A moça aparentemente não gostou, mais ainda porque eu mostrava a minha rede de proteção, sugerindo que ela tivesse uma se queria ficar assim sentada no batente tomando sol. Ela me pareceu aborrecida, mas fiquei pensando que eu poderia talvez sentar também assim, afinal eu tenho a tal rede e, como todos, preciso de vitamina D. No dia seguinte começaram os panelaços, e com eles mais e mais vizinhos chamaram a minha atenção. O rapaz do quarto andar do prédio em frente passa muito tempo no computador, e talvez seja quem transmite umas gravações pró-governo que enfurecem a vizinha do sétimo, que tem uma voz poderosa e panelas que devem estar completamente amassadas. O homem do quinto andar faz coro com ela, e grita para que o apoiador do presidente se exponha. Não consegue vê-lo de onde está, e isso o deixa mais e mais irritado. Chego a temer que passe mal. O rapaz costuma ignorá-lo e se mantém sentado impassível em frente ao computador, provavelmente ocupado das suas projeções. Em um desses panelaços o regador de lata no qual eu batia enfurecidamente com um garfo atraiu atenção, e de repente tinha gente me acenando “bom dia” na manhã seguinte. Na mesma manhã eu finalmente tomei coragem para pegar uma almofada para assento e outra para encosto e sentar no batente da janela junto com os gatos e as plantas para tomar sol. Comecei então a reparar em várias diferentes cenas matinais que não aconteciam antes da quarentena. No pátio do prédio da frente um casal dá diversas voltas com o cachorro de manhã bem cedo.  O bichinho parece bem contente em sair do apartamento, mesmo que seja apenas para o pátio, e saltita, abana o rabo e late, o que faz o senhor do primeiro andar colocar a cabeça pra fora e lançar um olhar contrariado para a família.  Ao lado desse prédio, duas moças fazem ginástica ao som de uma música qualquer que não consigo ouvir, comandadas por um rapaz que aparentemente divide apartamento com elas, e que que grita tão entusiasmadamente que tenho vontade de malhar da minha janela. Nesse mesmo horário uma mulher de cabelos pretos se debruça para fumar, provavelmente depois do café. Parece entediada e sonhadora. No pátio do meu próprio prédio, que antes era tomado pelas crianças, uma vizinha se reveza com um casal andando rápido, em círculos, no sol. Mais tarde outra vizinha estende sua canga, coloca os fones de ouvido, abre o livro e fica balançando os pés. Fico querendo saber o que estaria ouvindo. Outro dia acenei para o casal e conversamos, eu da janela e eles do pátio.  Notei que as crianças não têm descido mais. Os pais devem estar temerosos. Fico imaginando se estão dentro de casa, ou se as famílias foram para algum lugar mais seguro. Também notei pela primeira vez que minha janela não está bem limpa do lado de fora, e precisa de pintura. Percebi ainda que consigo fazer belas fotos quando o sol está batendo nas plantas e nos gatos. De repente o que era apenas um “fundo com vista livre” passou a ser um pedaço agradável do meu dia, da minha vida. Quando tudo isso acabar, vou pintar a janela. Talvez pinte de azul por dentro. Ainda durante a quarentena farei umas bandeirinhas coloridas para pendurar e futuramente recordar o tempo em que passei a ocupar mais esse canto da minha casa.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Pandemia


Dois mil e vinte, décimo primeiro dia da quarentena. Hoje tive medo. Pela primeira vez em todos esses dias eu tive medo. Antes estava ocupada postando feito louca para que as pessoas não saíssem de casa, limpando todas as superfícies até explodir em dor de cabeça por não suportar mais o cheiro da água sanitária, tomando suco de limão até o estômago doer, vigiando meu filho para ele lavar as mãos, desinfetar o sapato, tomar banho, colocar a roupa pra lavar;  ligando pela centésima vez pra minha mãe e tias para que não saiam de casa, que não cheguem perto de ninguém, que desinfetem tudo; limpando o cachorro, lavando toalhas, lavando lençóis, lendo, lendo, lendo artigos científicos, postando resultados de pesquisas, postando gráficos, pedindo que fiquem em casa; me alimentando bem, falando para meu filho se alimentar bem, pra todo mundo se alimentar bem, e não esquecer de tomar um pouco de sol na janela, e não esquecer de tomar vitaminas, e não esquecer de se exercitar em casa mesmo.  Hoje tive medo de perder alguém. Medo de quem eu posso perder. Medo pelos que não podem ficar em casa, medo pela amiga doente, pela família, pelo amor distante, medo, medo. Como se a vida não pudesse acabar todos os dias, em domingos felizes, em festas de aniversário, em dias de trabalho, no meio de um beijo, em lugares limpos, desinfetados, em casa, tomando vitaminas, tomando sol... Como se a vida de qualquer um não pudesse acabar de repente, como se não fosse urgente amar o tempo todo, todos os dias, como se houvesse tempo para brigas, bloqueios, afastamentos, desbloqueios, desentendimentos, como se o tempo sobrasse, como se precisássemos estar atentos apenas no meio da pandemia. Hoje tive medo.