Observação: Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais terá sido (ou não) mera coincidência!

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Kitty

Não me lembro a primeira vez que a vi, nem como nos tornamos amigas, mas lembro bem de seu rostinho dentuço, dos cabelos cacheados, dos olhos escuros, da baixa estatura e da sua forma de ver o mundo. Seu mundo era cheio de sinais, de significados ocultos. Uma simples peninha que entrasse pela janela era um presente de criaturas de mundos distantes, uma simples peninha, bem como uma conchinha na praia ou um pedaço de papel trazido pelo vento. Era cheia de mistérios, de histórias, histórias que inclusive enchiam cadernos que ela colecionava. Era boa aluna, sabia tocar aquelas músicas românticas no violão, músicas que eu adorava ouvir... "Na sombra de uma árvore", do Hyldon, coisa brega que eu adorava, e que adoro até hoje (...Larga de ser boba e vem comigo...) e que décadas depois me fez tomar uma decisão que mudaria minha vida... mas isso aconteceu décadas depois, então voltemos aos meus doze anos. Ela enchia minha imaginação com todos os amigos invisíveis, cujas atividades ela me descrevia e das quais me deixava participar. Adotava dietas esquisitas, ora não podia comer arroz, ora só podia comer arroz; tinha gestações imaginárias e inclusive uma filha, que se chamava Lua, e que andava pela casa, e costumava estar deitada no sofá justo na hora em que eu ia sentar, o que provocava um aviso aflito da mãe, fazendo com que eu interrompesse o movimento no último minuto e saltasse para não sentar em cima da criança. Criança bem ajuizada por sinal, porque minha amiga relatava as conversas que tinha com a "filha", conversas bem maduras para o nosso estágio de vida. Tinha a "Janela-que-dá-pro-morro", na época em que no morro havia verde, antes da chegada das balas traçantes, janela na qual nos debruçávamos aproveitando a primavera no rosto, enquanto cantávamos músicas dos Carpenters. Quantas alegrias me trouxeram aquelas cantorias de meninas debruçadas na janela! E tinha ainda aquela biblioteca fantástica, repleta de livros infanto-juvenis, dos quais eu me servia à vontade e que foram fundamentais em um período bem difícil da minha vida, mas disso já falei aqui em outra postagem, ou pelo menos do pouco que me lembro daquela época. Pois essa criatura morena de grandes dentes brancos que tanto alegrou a minha vida e enriqueceu a minha imaginação, essa criatura que me roubou a solidão e me deu um mundo cheinho de personagens, para que eu não me perdesse na dura realidade de pré-adolescente vivendo em meio a turbilhoes emocionais, pois essa criatura que eu amei tanto, bem cedo desistiu da realidade. Foi viver sabe-se onde e se tornou inalcançável. E eu nunca pude agradecê-la!

Um comentário:

don Martini disse...

"pois essa criatura que eu amei tanto, bem cedo desistiu da realidade. Foi viver sabe-se onde e se tornou inalcançável. E eu nunca pude agradecê-la! "