Observação: Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais terá sido (ou não) mera coincidência!

sábado, 15 de agosto de 2009

A mulher morta

Não o julgo, eu também não ficaria com uma mulher morta disse, olhando diretamente para ela. Estavam na mesa do restaurante, havia sido um almoço tão divertido e agora isso! Falava do passado, de um desses casos familiares que todos comentam baixo, longe dos ouvidos das crianças. Uma dessas histórias mal contadas que com o tempo todos fingem que nunca existiu. Em mais um ato de rebeldia, como era do seu temperamento, ele resolvera trazê-la à lembrança de todos, em som perfeitamente audível, alguns tons acima do burburinho da hora do almoço de fim de semana. Resolvera trazer à tona e dissera as últimas palavras olhando para ela, como que desafiando-a. Ela calou.
Sentia-se morta. Nascera morta e provavelmente morta estivera ainda no útero. A mãe costumava repetir que não comia nada quando estava grávida. Não havia demanda de alimento para um feto morto, pensava ela agora.
Sua vida fora formada de pequenas ilhas de entusiasmo em um imenso mar de solidão e tédio. Tentava. Há anos que tentava. Costumava ter esperança cada vez que a vida lhe trazia uma surpresa; nessas épocas tornava-se sorridente, ágil, interessante. Muitas vezes forçara situações, trabalhara ardentemente para obter o que muitas pessoas tinham de graça, apenas por estarem vivas; forçara um pouco de vida para dentro de si como se empurra colheradas de sopa pela goela de um doente, mas a solidão e o tédio acabavam por alcançá-la, inexoravelmente.
Uma mulher morta dissera ele, olhando-a. Ela calara. Não havia o que dizer. Ele havia percebido o que ela tentara desesperadamente ocultar durante todos aqueles meses de viagens, livros, filmes, programas divertidos, tudo o que pudesse gerar assunto, movimento. O que ela tentara desesperadamente ocultar para poder sorver ainda um pouquinho do calor, da energia, do ar morno que daquele amor exalavam.
Agora ele já sabia e a ela só restava voltar ao porão escuro e continuar tentando encontrar dentro de si, daquele imenso vazio que era o seu interior, um sopro qualquer daquilo que outros tinham facilmente, naturalmente.

Um comentário:

Tamara Queiroz disse...

Sentia-se morta. Nascera morta e provavelmente morta estivera ainda no útero.

Que dolorido!

Sabe, fez-me lembrar de um período da minha vida que vivia e remoía um trauma. Mas não perdi a esperança e vivo naturalmente.

Um beijo,