Observação: Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais terá sido (ou não) mera coincidência!

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Cristina

Reparara nela pela primeira vez durante o show, ou melhor, ele reparara. Apenas virara a cabeça para seguir a direção do olhar dele como era já um hábito, uma obsessão. Lá estava a moça em um canto. Devia ter vinte e poucos anos e sua juventude se destacava em meio a uma platéia com idade suficiente para havê-la gerado. Era uma moça interessante, a pele muito clara, os cabelos compridos, de um louro escuro, os olhos castanho de contorno amendoado... Estava sentada ao lado de uma mulher. Seria sua mãe? Procurou perto dela alguém que parecesse um namorado ou marido, mas não encontrou.
Estavam em um hotel fazenda. Durante a manhã haviam caminhado pelas redondezas, conhecido alguns dos hóspedes e passado boa parte de hora na beira do lago tecendo várias teorias divertidas a respeito do comportamento de um bando de patos selvagens. Os menores nadava em torno de um pato maior, o qual mergulhava obsessivamente a cabeça na água deixando a cauda na vertical, provocando em seus observadores muitas risadas. Durante a tarde haviam participado da leitura de alguns capítulos do livro de um dos hóspedes habituais, livro no qual se desenrolava a história de um suposto assassinato ocorrido na fazenda e cujos personagens, hilários, baseavam-se livremente nos demais hóspedes.
Fora um dia agradável e agora à noite abrigavam-se do frio em uma das áreas comuns onde o marido tocava e ela assistia, sentada em uma das cadeiras que ali haviam sido dispostas pouco antes do início da noite. Tomava uma caipirinha de maracujá e olhava, encantada, o homem que amava em uma de suas atividades prediletas, entreter a platéia com a sua música.
Após reparar na moça voltou-se ainda algumas vezes, mas não tornou mais a vê-la até o dia seguinte, quando, após o passeio matinal os hóspedes reuniram-se em círculo, sentados próximos à piscina, tomando drinques e revezando-se no papel de contar histórias divertidas, de piadas à poemas de cordel. A moça reaparecera então, dessa vez ao lado do rapaz alto de cabelos pretos, argola na orelha e um sorriso simpático. Está acompanhada, pensara então... como são jovens...
O almoço foi servido na sede da fazenda, casa construída ainda no século 19 e perfeitamente restaurada. Estavam em uma sala enorme que os proprietários mobiliaram com mesas e cadeiras de madeira pesada, escura. Por todo o lado se viam objetos de prata, desde os castiçais até os açucareiros. Pelas mesas estavam dispostos jogos americanos de renda, linho bordado ou croché, tudo dentro de uma atmosfera antiga. Pelos janelões abertos podiam ver a paisagem tranquila e ensolarada. Pois foi nesse almoço, mais precisamente na hora da sobremesa, que a moça puxou conversa. Perguntou algo sobre o pavê e após ouvir a resposta emendou em outro e outro assunto. Enquanto falava dirigia-lhe aqueles olhos vivos e ajeitava os longos cabelos, ora fazendo um coque sem grampos que rapidamente se desfazia, ora puxando os fios para um lado e enrolando-os com as mãos, de perto da raiz até as pontas, penteado esse que também não durava muito. Contou-lhe que se chamava Cristina, morava em uma cidade serrana, era artista plástica e estava envolvida em um projeto de reciclagem de óleo de cozinha. Quando a babá trouxe a menininha, que devia ter por volta de um ano e fazia caretinhas para comer a banana amassada, Cristina estava empenhada em explicar o projeto. Continuou explicando enquanto tentava convencer a neném a comer a sobremesa. Havia conhecido um padre, não sou religiosa, frisou, mas ele fazia um trabalho bacana de recuperação de dependentes químicos. Surgira a necessidade de arranjar ocupação para os dependentes, ocupação que lhes trouxesse alguma renda. A idéia era fabricar sabão a partir de óleo usado. A moça já havia conseguido apoio para iniciar o projeto e agora procurava uma forma de produzir também sabão um pouco mais refinado.
Enquanto ouvia a moça, observava seus olhos, cabelos, gestos, sua maneira de falar e alimentar o bebê, sua vitalidade... Olhava fascinada para aquela moça que falava de sí, dos seus planos, não do marido sentado ao lado nem do bebê que alimentava. Cristina, por mais amorosa com a familia que parecesse, e parecia, estava encantada com o que conseguia produzir. Aquilo lhe provocou uma saudade doída, uma nostalgia da época em as coisas apenas haviam começado a ficar confusas, difíceis. De quando ainda havia pouco tempo que tomara o caminho que para ela se revelaria errado.
Mais tarde, enquanto esperava o marido sentada no alpendre, viu Cristina passar de mochila nas costas. Quando a moça se voltou e, de pé, no gramado, iluminada pelo sol que se esvaia acenou para ela, despedindo-se, percebeu que talvez houvesse encontrado a trilha que a levaria para além da dor, para além da falta de sentido contra a qual vinha lutando há tantos anos. Cristina lhe havia fornecido uma pista que talvez lhe permitisse encontrar uma outra moça, uma que andava esquecida dentro de sí, em meio ao vazio. A moça que um dia fez tantos planos, que projetou um futuro feliz, rico em experiências, produtivo. A moça que desapareceu tentando viver o que não lhe pertencia, tentando ser feliz por intermédio de outrem. Teve esperança de poder encontrá-la, de que ainda desse tempo de dar-lhe a mão, ajudá-la a encarar seus erros e a retomar o caminho, do ponto em que havia se desviado, no tempo que fosse necessário, sempre em direção à luz. Teve esperança de ainda poder transformar aquela moça adormecida em uma mulher feliz, de olhos vivazes, uma mulher que não precisasse seguir o olhar de ninguém, por estar de olho em seu próprio caminho.
Vou te passar um e-mail prometeu Cristina. Ela sorriu agradecida.

2 comentários:

Flávio Antunes Soares disse...

Fiz uma leitura atenciosa de teus textos. Apreciei tudo que há aqui.

Celso disse...

A história é interessante, porém corre pelos personagens sem deixar claro qual é o papel de cada um. O namorado só evidenciou Cristina, ou foi Cristina quem evidenciou o namorado? Cristina, uma pessoa ou um fato?
Bjs.