Observação: Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais terá sido (ou não) mera coincidência!

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Passeio no tempo

 

Escrevia ao lado do janelão de um dos quartos, no apartamento onde vivia fazia quase quinze anos. A poltrona antiga onde se sentava estava desfiada e puída pela ação dos seus gatos e cheirava levemente a vinagre. O computador estava em cima de um tipo de almofada  que recebera de brinde ao comprar pacotes de ração, e que aparentemente havia sido projetada por alguém justamente para apoiar um laptop. O cachorro dormia na cama ao lado, onde a velha senhora estava sentada assistindo a uma novela coreana. Havia o som irritante da TV e um aroma distante do xixi que a cachorra havia feito sobre os tacos do chão, e que permanecia por mais que  houvesse sido meticulosamente limpo. Pensou no quanto seria bom tolerar perfumes, para poder simplesmente usá-los diluídos na limpeza dos tacos, porém os perfumes lhe causavam fortes dores de cabeça.

Alguém se divertia batendo uma bola na parede alguns andares abaixo. A desagradável vibração provocada pelas batidas fazia contraponto ao delicioso burburinho dos passarinhos que se preparavam para encerrar o dia. Apesar dos passarinhos, pelejava para não ser tomada pelo mal humor. Levantou e acendeu a luz, já que a luminosidade diminuía rapidamente naquele entardecer. Pensou no dia anterior, um feriado. Tinha sido convidada para um lançamento de livro. Entre leituras de trechos e taças de espumante, a amiga com quem fora havia comentado sobre ter caído na conversa de “pode deixar que o cachorrinho é meu, vou cuidar dele e levá-lo para minha asa quando me mudar”. A amiga reclamava que mesmo agora, com as filhas já crescidas, precisava brigar pelo seu direito de sair e voltar na hora que quisesse, sem ter que ficar presa cuidando da neta canina, e emendou com o estranhamento que sentia pela filha mais velha, já casada, estar limitando a sua tendência em interferir, com a melhor das intenções, no negócio que havia montado com o marido.

Ao mesmo tempo em que ouvia, não conseguia deixar de pensar em como havia entrado na mesma história de cachorrinho; em como fora estranho se acostumar ao fato do filho e a nora terem uma vida na qual ela não estava totalmente inserida; e em como de vez em quando recebia lembretes meio impacientes de que sua interferência nos assuntos dos dois não era bem-vinda, a menos que fosse solicitada. 

Assim como sua amiga, sentia-se ora injustamente privada de liberdade, ora indevidamente despojada do que acreditava ainda serem suas funções maternas. E no seu caso, com relação à ingerência sobre o seu tempo, havia também a questão da sua mãe, que que precisara ser levada para a sua casa, por estar demenciando. Para estar com a amiga no dia anterior, havia chamado uma acompanhante para a velha senhora. Quando achou que finalmente estaria dona do seu tempo, encontrava-se tão presa quanto antes.

Após os autógrafos, decidiram sentar-se em um café para continuar com a conversa. No cinema ao lado estava programado um festival com tema de halloween, e nos letreiros anunciada uma sessão de Rock Horror Show para sexta à meia-noite. O anúncio a projetou na velocidade de segundos a algumas décadas passadas, quando queria muito assistir a Rock Horror Show, em uma sessão de meia-noite, naquela mesma sala de cinema. Como era tarde e estava sem companhia, os pais haviam decidido ir com ela, ainda que fosse um filme que não os interessasse nenhum pouco, e que não tivessem hábito de sair com ela, e muito menos de ir ao cinema. Lembrava de como havia se vestido de preto, cor favorita na época, e ido feliz participar da sessão, na surpreendente companhia dos dois. Aquela lembrança da juventude a fez sorrir.

Terminou o chocolate quente que estava tomando, e que estava achando delicioso apesar de preferir o café que não se atreveria a tomar àquela hora da noite. Deixou a amiga em um restaurante peruano onde ela iria encontrar com outras pessoas e voltou para casa. Foi   recebida com alegria pelos animaizinhos. Agradeceu à cuidadora, deu boa noite para a velha que assistia TV já com os olhos pesados, e foi se preparar para dormir. Um dos cachorros, que a essa altura estava na sua cama, soltou um suspiro de pura satisfação quando recebeu um carinho entre as orelhas na hora em que ela se deitou ao seu lado, após ter desligado a TV no quarto da mãe que já dormia. Abraçou um travesseiro e pensou que talvez a vida fosse isso mesmo; cavar momentos de liberdade e receber amor e afeto de criaturas com as quais não havia exatamente planejado estar.

A lembrança desses acontecimentos do dia anterior libertou-a de qualquer resquício de mal humor. Pousou o computador na escrivaninha, fez festinha no cachorro, e chamou a velha senhora para jantar. Mais tarde continuaria o texto que havia começado a escrever.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Believer

 

Na época ela expressou que havia perdido a alegria matinal. Que acordava e não tinha vontade de sair da cama. Era como media a potência da sua tristeza, do seu luto. A outra confidenciou que agora andava inquieta, mas que antes não era assim, que antes costumava ficava em paz em casa, com a família, fazendo suas coisas. Na verdade, não sei se “inquieta” foi a palavra que ela usou, mas era algo como ter perdido o sossego. Talvez fosse assim o que chamam de “perder o chão”. Teve ainda a que comentou algo sobre a casa ser seu refúgio. Esses pedaços de discurso, reunidos como em um trabalho de patchwork, iam mostrando o cenário da bolha disfuncional em que Inês vivia. Ou, talvez, ao contrário, a bolha de felicidade na qual algumas pessoas usualmente habitavam. 

Décadas se passaram até que todos esses fragmentos reunidos começassem a fazer sentido, que Inês descobrisse o que deveria buscar. Baita desperdício de tempo? Talvez não, talvez todo o caminho que Inês percorrera ao longo dos anos, fosse justamente alimentado pelo fato dela intuir que as coisas poderiam ser de outro jeito, embora ainda não soubesse qual. Havia algo, um lugar de estar no mundo, que precisava ser alcançado. Pensava nisso quando apoiou a caneca no tecido florido. Algumas pessoas, como Inês, descobrem bem tarde. Algumas não descobrem nunca!

terça-feira, 9 de julho de 2024

Velhas armadilhas, novas estratégias

 

Gostava das palavras. Tanto, que as da sua língua materna não eram suficientes. Precisava aprender outras, várias, quanto mais, melhor. Tinha um imenso prazer em se comunicar na língua local em diferentes países. Não que fosse fluente em todas, mas ter o suficiente para pedir informações e entender avisos de comissários de bordo, pedir ou dar direções a motoristas de taxi e recepcionistas de hotéis e museus. Entrar em um bar ou restaurante e pedir o que quisesse. Tudo isso causava satisfação, e já havia sido o caso de provocar risadas dos seus interlocutores por ter se aventurado além dos seus conhecimentos.

O que gostava na matemática (talvez só o que gostasse na matemática) eram as letras gregas (que se juntaram aos radicais e começaram a fazer sentido em letreiros, quando visitou seu país de origem). Estudou latim para entender descrições botânicas. Achava incrível como as palavras se distribuíam em textos. Amava o fato de a linguagem escrita permitir ser decifrada no tempo que fosse necessário, embora desde cedo lesse em boa velocidade. Já a palavra falada por vezes saltava mais rápido que pudesse acompanhar. E mudava de sentido avidamente... Palavras faladas viviam bailando, rodopiando e evoluindo, como pokémons ou como sacis em redemoinhos, antes de serem capturadas em textos. Fascinantes.

Lembrava de uma professora da oitava série comentando com ar entusiasmado que se havia comunicação, não havia erro. Achava a comunicação por demais complexa, havia muito erro proposital. Pensou nas sequências de palavras construídas não para esclarecer, mas a fim de criar enigmas e duplos sentidos, ou inverdades puras. Achava muito angustiante.

Por vezes, como agora, sentia sua energia capturada em dificuldades de comunicação. Com o passar dos anos havia tomado a decisão de se esforçar para não ficar presa nisso. No momento estava pensando em liberar essa energia voltando-a para o aprendizado de caracteres chineses. Pouco pratico, mas bem mais divertido.

sexta-feira, 5 de julho de 2024

A Cesar o que é de César

 

Com a volta do apetite deu-se conta que dessa vez fora rápido. Havia decidido dar uma volta em um meio-dia ensolarado de inverno, e observar algumas flores. Rir um pouco com bobagens de internet. Cheirar casca de tangerina. Comprar pincéis. E o mais importante, sentir raiva. Da mais pura, mais genuína, direcionada exatamente para quem a merecia. A Cesar o que é de Cesar. Libertador!

sábado, 29 de junho de 2024

Hoje não

 

Não consigo bem descrever o verde, mas é suave, com um tantinho de cinza, clarinho, repousante. E os puxadores foram lixados de modo a deixar entrever o marrom da madeira. Não recordo se foi o primeiro móvel que comprei na vida, creio que sim. De madeira boa, não sei dizer qual. O verde veio bem mais tarde. Antes nem gostava deste ar desgastado, não lembro bem porque dei essa lixada nos cantos. Mas lembro porquê pintei. Gosto de olhar pra ela, os puxadores como dois olhos me encarando serenos e fortes. E toda a bagunça sobreo tampo: livros, lápis, papéis, cadernos, computador, vitaminas, telas, um tantinho de maquiagem. Porções das minhas construções. Estamos aqui por você, dizem. Pode ser que me seja tirado um dia, se a demência vier, como veio para a minha mãe, mas daí já não terá mais importância. Por agora estão ali, fortes, testemunhas das minhas edificações. Muralha inviolável. Espada, defesas. “Não mexe comigo que eu não ando só, eu não ando só, eu não ando só”.

terça-feira, 30 de abril de 2024

"Eu me prometo o sol, se hoje o sol sair, ou a chuva, se a chuva cair"...

Seu aniversário estava próximo. A terceira idade já a havia encontrado, porém sem nenhuma comemoração especial. Havia sobrevivido a uma pandemia nos últimos anos, a velhice e a doença a rondavam. Primeiro havia sido o pai, que já se fora após muitos anos de invalidez. Agora a mãe, com demência, exigia seus cuidados. Mas não estava abatida, não dessa vez, não ainda. 

Não sabia exatamente em que momento tudo começou, mas sabia quando percebeu. Foi em uma pequena livraria em um shopping. Resolveu dar uma volta enquanto aguardava uma consulta médica que estava muito atrasada, e foi surpreendida ao encontrar essa livraria. Algo raro em 2024, uma livraria. Por algum motivo andava pensando em bebês nas ultimas semanas e parou para se deliciar com as ilustrações dos livros infantis. Depois passou para a seção de adultos, onde escolheu dois livros para si. Um pelo autor, e outro pela linda capa. Antes de voltar ao consultório médico, ainda se deu de presente dois colares e um pequeno brinco. Nada caro, tudo lindo e satisfatório. De volta ao consultório, mergulhada na leitura, em parte porque estava gostando, e em parte para evitar a conversa de uma outra paciente muito simpática. Foi quando começou a ter ideias. Na verdade não sabia bem se tinha as ideias, ou se elas a tinham, mas de qualquer forma, aquilo significava a chegada dos sopros de vida que a atingiam esporadicamente, trazendo novos projetos. 

Sorriu. 

Ao chegar em casa escreveu uma dedicatória para si mesma, pela primeira vez.

Dizia: "Querida Eliana,

Que você permaneça sendo muitas, e que cada uma tenha voz. Crie! Trabalhe! Ame!

Você é a pessoa mais importante da sua vida, aproveite!

Feliz aniversário! 💓

Eliana, 2024.