Observação: Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais terá sido (ou não) mera coincidência!

domingo, 13 de setembro de 2009

Desproporcional

Era uma menina franzina e pálida, muito menor que as crianças da sua idade, quase um fiapo de gente. Talvez fosse o motivo de ter tomado consciência da sua fragilidade ainda tão cedo. Enquanto outras crianças temiam monstros, escuro, o homem do saco ou sei lá mais o que, ela temia ser deixada sozinha. Antes dos quatro já pensava nisso, como poderia cuidar de si com aquele tamanhinho? Era este o medo que batia quando acordava durante a noite, medo de ficar sozinha e de não conseguir. Por isso queria crescer rápido, atingir o tamanho e a capacidade cognitiva que a permitissem defender-se.
Além do medo, outro sentimento chegou muito cedo. Foi por causa da tia, aquela que morava com eles desde que conseguia se lembrar; a tia que a fazia rir. Não se ria muito naquela casa. Os pais não eram felizes e a alegria daquela tia, a juventude, a liberdade, eram quase uma afronta. A tia lhe dera aqueles livros com gravuras coloridas, aqueles que ela fingia ler enquanto inventava histórias; a tia a fazia rir. Um dia eles se foram, mudaram de cidade, pra muito longe, mais de um dia de estrada, a tia ficou. A menina tinha quatro anos então e descobriu que mais infernal que o medo era aquela falta que doía na alma e nos ossos. Sequer sabia que a falta tinha nome, um nome até bonito pra um sentimento tão doído - saudade.
Era uma menina franzina e pálida com uma cabeça um tanto desproporcional para o corpinho, uma cabeça que pensava e sentia coisas de gente grande, mas com um vocabulário ainda insuficiente para falar sobre aquilo... então chorava... Está de manha por que? Engole esse choro e come, ninguém morreu, engole o choro agora que eu to mandando! Mas como engolir um choro que não cabia naquele corpo? Como engolir alguma coisa se estava tudo tão cheio? Se transbordava? Como explicar? Só era capaz de dizer eu não consigo, eu não consigo... Foi nessa época que a menina foi ficando azul, depois transparente, então desapareceu. Seu corpinho raquítico nunca foi encontrado. Falava-se que havia caído no poço, que havia sido levada por ciganos e até devorada por uma matilha de cães abandonados que vagavam pela cidade e que, de vez em quando, faziam sumir alguma criação dos quintais. Mais ou menos na época do sumiço a cidade ouviu pela primeira vez aquele choro de origem indefinida, um choro de inundar, de afogar, impossível de ser calado com gritos, macumbas, missas, tiros ou explosões. Um choro torturante que durava e durava, só restando à cidade tapar os ouvidos e esperar que cessasse ao menos temporariamente.

2 comentários:

Joyce Rocha disse...

Incrível!!!
As viagens nas quais buscamos a nós mesmos são de um potencial incrível! Capacitamo-nos a cada passo por nossa caverna da alma, a cada lágrima debulhada em dias de nevoeiro sob um sol de verão, e a cada sobrevôo em que vemos a nós mesmos estendidos no cenário. É preciso ser mais para conhecer a nós. É preciso ter a mente em eterna ebulição para não nos deixar assentar na mesmice de ficarmos míopes ao nos olharmos no espelho do cotidiano.
E é isso que seus textos provocam – uma busca por dentro de nós!!!
Simplesmente incrível!!!

Amar sem sofrer na Adolescência disse...

Um turbilhão de sentimentos suscitaram esse texto. De uma beleza tocante, delicadamente forte. Parabéns pela beleza do texto!
Bjs