Observação: Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais terá sido (ou não) mera coincidência!

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Quizás, Quizás ...

 

Talvez não devesse ter submetido seu corpo sexagenário ao álcool em pleno dia de semana, mas havia sido um dia especialmente estressante. Havia? Porque agora já não importava mais. Tanto fazia. Depois da cerveja e dos restos de doce de abóbora da feira de orgânicos que havia devorado, antes de uma ameixa seca, que também era doce, estava se sentindo particularmente bem e grata. A temperatura havia baixado um pouco. Uma brisa gostosa entrava pela porta aberta do quarto. O outono em sua cidade era sempre bem-vindo, sempre agradável. Não sabia se pelo álcool, açúcar, temperatura, ou porque não tinha tempo sobrando, estava feliz e em paz. Sentindo a maciez de todos aqueles fios de algodão sob o corpo, recostada nos travesseiros fofos, apenas escrevia. Sentia-se bem e escrevia. Na idade em que o futuro começa a ficar escasso, o agora ganha outro sentido. Lembrava de uma época de ansiedade, de desejo, de inquietação, época em que sonhara estar apenas em paz, como nesse momento.  Passou os pés no pelo do cachorro. Observou o brilho que a luz provocava na luminária de metal, pensando que ainda não a havia desenhado. Respirou fundo, e com a língua nos lábios, decidiu lembrar de um certo beijo. Talvez já fosse hora. Talvez!

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Fofoquinha

 

Já comentei antes, em alguma postagem, sobre a maturidade ter me trazido o conforto de estar em paz com meus botões; de descer do palco pra plateia e atuar apenas como observadora do caos alheio. Jamais como coadjuvante. Eis que aconteceu de novo de ter descido do palco.

Explico! Pelo menos o tanto que posso explicar sem que os envolvidos saiam do anonimato. O fato é que recebi uma mensagem de uma pessoa outrora muito querida. Digo outrora, por estar a pessoa bastante distanciada. Confesso que a princípio a mensagem me trouxe um quentinho no coração. Me pedia ajuda com uma questão. Prontamente me dispus a colaborar, até descobrir que a dita amadinha estava apenas jogando verde sobre uma questão. Fiquei magoada? Confesso que fiquei um pouquinho sim.

Nesse momento preciso de um parêntesis sobre o “jogar verde”!: eu não costumo esconder minhas intenções ou motivos. De modo geral respondo francamente o que me perguntam. Acho uma enorme perda de tempo - tempo esse que não tenho mais pra desperdiçar - ficar criando armadilhas para capturar respostas, em vez de se perguntar diretamente o que se quer.

Enfim, fiquei sim um tantinho magoada. Mas só até perceber que a pessoa é que deveria estar se sentindo desconfortável com sua atitude um tanto imatura, pra não dizer ridícula. E que eu deveria apenas voltar à minha plenitude outonal. E que sentimento bom de vitória é esse, de não deixar a inquietude alheia nos atingir!!  De simplesmente desviar o foco para cenários mais agradáveis e ignorar.

Dito isso, encerro essa fofoquinha e volto ao meu livro 😊! Boa noite e bom feriado a todes!!

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Passeio no tempo

 

Escrevia ao lado do janelão de um dos quartos, no apartamento onde vivia fazia quase quinze anos. A poltrona antiga onde se sentava estava desfiada e puída pela ação dos seus gatos e cheirava levemente a vinagre. O computador estava em cima de um tipo de almofada  que recebera de brinde ao comprar pacotes de ração, e que aparentemente havia sido projetada por alguém justamente para apoiar um laptop. O cachorro dormia na cama ao lado, onde a velha senhora estava sentada assistindo a uma novela coreana. Havia o som irritante da TV e um aroma distante do xixi que a cachorra havia feito sobre os tacos do chão, e que permanecia por mais que  houvesse sido meticulosamente limpo. Pensou no quanto seria bom tolerar perfumes, para poder simplesmente usá-los diluídos na limpeza dos tacos, porém os perfumes lhe causavam fortes dores de cabeça.

Alguém se divertia batendo uma bola na parede alguns andares abaixo. A desagradável vibração provocada pelas batidas fazia contraponto ao delicioso burburinho dos passarinhos que se preparavam para encerrar o dia. Apesar dos passarinhos, pelejava para não ser tomada pelo mal humor. Levantou e acendeu a luz, já que a luminosidade diminuía rapidamente naquele entardecer. Pensou no dia anterior, um feriado. Tinha sido convidada para um lançamento de livro. Entre leituras de trechos e taças de espumante, a amiga com quem fora havia comentado sobre ter caído na conversa de “pode deixar que o cachorrinho é meu, vou cuidar dele e levá-lo para minha asa quando me mudar”. A amiga reclamava que mesmo agora, com as filhas já crescidas, precisava brigar pelo seu direito de sair e voltar na hora que quisesse, sem ter que ficar presa cuidando da neta canina, e emendou com o estranhamento que sentia pela filha mais velha, já casada, estar limitando a sua tendência em interferir, com a melhor das intenções, no negócio que havia montado com o marido.

Ao mesmo tempo em que ouvia, não conseguia deixar de pensar em como havia entrado na mesma história de cachorrinho; em como fora estranho se acostumar ao fato do filho e a nora terem uma vida na qual ela não estava totalmente inserida; e em como de vez em quando recebia lembretes meio impacientes de que sua interferência nos assuntos dos dois não era bem-vinda, a menos que fosse solicitada. 

Assim como sua amiga, sentia-se ora injustamente privada de liberdade, ora indevidamente despojada do que acreditava ainda serem suas funções maternas. E no seu caso, com relação à ingerência sobre o seu tempo, havia também a questão da sua mãe, que que precisara ser levada para a sua casa, por estar demenciando. Para estar com a amiga no dia anterior, havia chamado uma acompanhante para a velha senhora. Quando achou que finalmente estaria dona do seu tempo, encontrava-se tão presa quanto antes.

Após os autógrafos, decidiram sentar-se em um café para continuar com a conversa. No cinema ao lado estava programado um festival com tema de halloween, e nos letreiros anunciada uma sessão de Rock Horror Show para sexta à meia-noite. O anúncio a projetou na velocidade de segundos a algumas décadas passadas, quando queria muito assistir a Rock Horror Show, em uma sessão de meia-noite, naquela mesma sala de cinema. Como era tarde e estava sem companhia, os pais haviam decidido ir com ela, ainda que fosse um filme que não os interessasse nenhum pouco, e que não tivessem hábito de sair com ela, e muito menos de ir ao cinema. Lembrava de como havia se vestido de preto, cor favorita na época, e ido feliz participar da sessão, na surpreendente companhia dos dois. Aquela lembrança da juventude a fez sorrir.

Terminou o chocolate quente que estava tomando, e que estava achando delicioso apesar de preferir o café que não se atreveria a tomar àquela hora da noite. Deixou a amiga em um restaurante peruano onde ela iria encontrar com outras pessoas e voltou para casa. Foi   recebida com alegria pelos animaizinhos. Agradeceu à cuidadora, deu boa noite para a velha que assistia TV já com os olhos pesados, e foi se preparar para dormir. Um dos cachorros, que a essa altura estava na sua cama, soltou um suspiro de pura satisfação quando recebeu um carinho entre as orelhas na hora em que ela se deitou ao seu lado, após ter desligado a TV no quarto da mãe que já dormia. Abraçou um travesseiro e pensou que talvez a vida fosse isso mesmo; cavar momentos de liberdade e receber amor e afeto de criaturas com as quais não havia exatamente planejado estar.

A lembrança desses acontecimentos do dia anterior libertou-a de qualquer resquício de mal humor. Pousou o computador na escrivaninha, fez festinha no cachorro, e chamou a velha senhora para jantar. Mais tarde continuaria o texto que havia começado a escrever.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Believer

 

Na época ela expressou que havia perdido a alegria matinal. Que acordava e não tinha vontade de sair da cama. Era como media a potência da sua tristeza, do seu luto. A outra confidenciou que agora andava inquieta, mas que antes não era assim, que antes costumava ficava em paz em casa, com a família, fazendo suas coisas. Na verdade, não sei se “inquieta” foi a palavra que ela usou, mas era algo como ter perdido o sossego. Talvez fosse assim o que chamam de “perder o chão”. Teve ainda a que comentou algo sobre a casa ser seu refúgio. Esses pedaços de discurso, reunidos como em um trabalho de patchwork, iam mostrando o cenário da bolha disfuncional em que Inês vivia. Ou, talvez, ao contrário, a bolha de felicidade na qual algumas pessoas usualmente habitavam. 

Décadas se passaram até que todos esses fragmentos reunidos começassem a fazer sentido, que Inês descobrisse o que deveria buscar. Baita desperdício de tempo? Talvez não, talvez todo o caminho que Inês percorrera ao longo dos anos, fosse justamente alimentado pelo fato dela intuir que as coisas poderiam ser de outro jeito, embora ainda não soubesse qual. Havia algo, um lugar de estar no mundo, que precisava ser alcançado. Pensava nisso quando apoiou a caneca no tecido florido. Algumas pessoas, como Inês, descobrem bem tarde. Algumas não descobrem nunca!

terça-feira, 9 de julho de 2024

Velhas armadilhas, novas estratégias

 

Gostava das palavras. Tanto, que as da sua língua materna não eram suficientes. Precisava aprender outras, várias, quanto mais, melhor. Tinha um imenso prazer em se comunicar na língua local em diferentes países. Não que fosse fluente em todas, mas ter o suficiente para pedir informações e entender avisos de comissários de bordo, pedir ou dar direções a motoristas de taxi e recepcionistas de hotéis e museus. Entrar em um bar ou restaurante e pedir o que quisesse. Tudo isso causava satisfação, e já havia sido o caso de provocar risadas dos seus interlocutores por ter se aventurado além dos seus conhecimentos.

O que gostava na matemática (talvez só o que gostasse na matemática) eram as letras gregas (que se juntaram aos radicais e começaram a fazer sentido em letreiros, quando visitou seu país de origem). Estudou latim para entender descrições botânicas. Achava incrível como as palavras se distribuíam em textos. Amava o fato de a linguagem escrita permitir ser decifrada no tempo que fosse necessário, embora desde cedo lesse em boa velocidade. Já a palavra falada por vezes saltava mais rápido que pudesse acompanhar. E mudava de sentido avidamente... Palavras faladas viviam bailando, rodopiando e evoluindo, como pokémons ou como sacis em redemoinhos, antes de serem capturadas em textos. Fascinantes.

Lembrava de uma professora da oitava série comentando com ar entusiasmado que se havia comunicação, não havia erro. Achava a comunicação por demais complexa, havia muito erro proposital. Pensou nas sequências de palavras construídas não para esclarecer, mas a fim de criar enigmas e duplos sentidos, ou inverdades puras. Achava muito angustiante.

Por vezes, como agora, sentia sua energia capturada em dificuldades de comunicação. Com o passar dos anos havia tomado a decisão de se esforçar para não ficar presa nisso. No momento estava pensando em liberar essa energia voltando-a para o aprendizado de caracteres chineses. Pouco pratico, mas bem mais divertido.

sexta-feira, 5 de julho de 2024

A Cesar o que é de César

 

Com a volta do apetite deu-se conta que dessa vez fora rápido. Havia decidido dar uma volta em um meio-dia ensolarado de inverno, e observar algumas flores. Rir um pouco com bobagens de internet. Cheirar casca de tangerina. Comprar pincéis. E o mais importante, sentir raiva. Da mais pura, mais genuína, direcionada exatamente para quem a merecia. A Cesar o que é de Cesar. Libertador!

sábado, 29 de junho de 2024

Hoje não

 

Não consigo bem descrever o verde, mas é suave, com um tantinho de cinza, clarinho, repousante. E os puxadores foram lixados de modo a deixar entrever o marrom da madeira. Não recordo se foi o primeiro móvel que comprei na vida, creio que sim. De madeira boa, não sei dizer qual. O verde veio bem mais tarde. Antes nem gostava deste ar desgastado, não lembro bem porque dei essa lixada nos cantos. Mas lembro porquê pintei. Gosto de olhar pra ela, os puxadores como dois olhos me encarando serenos e fortes. E toda a bagunça sobreo tampo: livros, lápis, papéis, cadernos, computador, vitaminas, telas, um tantinho de maquiagem. Porções das minhas construções. Estamos aqui por você, dizem. Pode ser que me seja tirado um dia, se a demência vier, como veio para a minha mãe, mas daí já não terá mais importância. Por agora estão ali, fortes, testemunhas das minhas edificações. Muralha inviolável. Espada, defesas. “Não mexe comigo que eu não ando só, eu não ando só, eu não ando só”.