Observação: Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais terá sido (ou não) mera coincidência!

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Ofélia

Sempre gostara de velharias, do contemporâneo apenas a liberdade de zanzar por onde bem entendesse sem dar satisfações.
No mais, rendas, frufrus, torneados. Coisas usadas, dessas que trazem histórias desconhecidas.
Costumava se achar velha demais, desde criança se achava velha demais, lembrava-se de olhar suas mãos quando ainda não chegara aos oito anos e ver mãos ossudas, enrugadas, diferentes das mãozinhas rechonchudas com covinhas na base dos dedos. Não gostava das suas mãos. Com o tempo parou de pensar nisso, nas coisas que não gostava em si para pensar em figurinos, jóias, penteados e louça de outra época. Veio dai o gosto por museus.
Na adolescência gostava de criar histórias com donzelas pálidas, de longos cabelos e longos vestidos, que conviviam com fantasmas em velhas casas de fazenda com móveis pesados e escuros ornamentados com palhinha e brocados. Velhas casas cheias de quartos que não eram usados há décadas, mas que ainda guardavam mobilia, livros, roupas e objetos dentro de baús embolorados.
Adulta era antiga também no amor, dessas que gostam de cuidar dos homens, de incentivá-los a crescer, de vibrar com seus progressos, consolar seus fracassos, trazer-lhes doces e oferecer escalda-pés, como talvez fizesse sua avó, ou que sabe sua bisavó! Talvez por isso mantivesse com tanta dedicação o casamento com aquele que havia sido seu primeiro namorado e cuja companhia preferia a qualquer outra. Talvez por isso o marido houvesse enriquecido durante os anos de casamento, enquanto ela parecia apenas colecionar lindas e delicadas tacinhas de licor, garimpadas em brechós, que decoravam a cristaleira na sala de jantar. Nos últimos anos, além dos brechós, adquirira o hábito de vasculhar os pertences do marido, o que lhe permitia colecionar também evidências de que este lhe era e talvez sempre houvesse sido infiel.
Em outra época teria sofrido de tuberculose, mas os tempos estavam mais para depressão...

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Incontrolável

Seu maior monstro era tentar controlar; segurar o tempo, segurar a vida, encontrar a zona de conforto e petrificá-la! Quanto tempo se vive assim antes que a agitação domine e as pernas teimem em ir onde o juízo desaconselha?

domingo, 26 de julho de 2009

Paternidade

Havia saído de fininho, como adquirira o hábito de fazer pela manhã. Levara a pasta e o violão.
Ela levantou quase imediatamente, embora tenha demorado bem mais que o necessário em frente à pia do banheiro observando sua aparência, olhando a cabeleira revolta e o rosto descansado. Lavou os olhos ligeiramente borrados pelos restos da maquilagem da noite anterior e escovou dentes com a escova que conquistara seu lugar no armário em cima da pia. Ao sair do banheiro esticou lentamente os lençóis e afofou os travesseiros com cuidado. Deu ainda uma ou duas voltas pelo quarto antes de respirar fundo, abrir a porta e dirigir-se à sala . Tentou disfarçar a tensão que sempre sentia quando o medo de estar invadindo um momento íntimo demais brigava conta a vontade de estar perto, no mesmo cômodo que ele. Pode vê-lo assim que alcançou o final do corredor: dedilhava e escrevia, escrevia e dedilhava, de costas, em frente ao console onde a folha de papel repousava entre duas pequenas estátuas; um busto de Beethoven e a Pietá.
Tomou rápida e silenciosamente o corredor que levava à cozinha, tentando agir com naturalidade. Quando voltou à sala trazia uma xícara de café sem açúcar e o jornal do dia que havia resgatado em frente à porta, em cima do tapete, onde era deixado ainda de madrugada.
Ele continuava absorto quando ela se instalou no sofá em um posição pouco usual, de lado, com as pernas em lótus, virada para a mesinha de canto onde pousou a xícara enquanto abria o jornal e tentava se interessar por todos aqueles caracteres sem sentido, mas com a atenção voltada para o homem que trabalhava.
Quando ele se aproximou o café já havia terminado e o jornal havia sido quase completamente vasculhado, embora nada do que houvesse lido tivesse força suficiente para competir com os acordes que nasciam enquanto lia. Do jornal não ficara nada, não era ali que ela estivera durante aqueles minutos em que seus olhos seguiam os símbolos impressos, apenas símbolos impressos que não tiveram força suficiente para se transformar em linguagem.Como já se tornara hábito dos dois, mais um deles, foi a primeira a ouvir a nova canção; a primeira a ouvir a canção que falava de canções, de desejo pelas canções, de toda a sensualidade contida no ato de criar uma melodia, uma letra, de recebê-las cruas como dois lados de um único pedaço de pedra bruta, de alisá-lo para sentir a textura, as reentrâncias, de burilá-lo, de esculpi-lo. De todo o desejo, toda a entrega, toda a paixão contida naquele tempo dedicado a receber a melodia, a compreendê-la, ouvir seus desejos, satisfazê-la moldando-a com a poesia que lhe era gêmea. Então compreendeu a inquietação que sentira em outro momento como àquele, era a inquietação que sente todo amante quando observa o amado totalmente entregue a um ato do qual, embora fascinante, não pode participar. Mas compreendeu também que lhe cabia um papel, sempre coubera, embora ainda não tivesse percebido conscientemente; o de delicadamente, carinhosamente incitá-lo a separar-se da criação para que ela pudesse seguir seu caminho na vida que acabara de ganhar.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Leveza?

Comprara-o naquela tarde, em uma dessas lojas de quinquilharias usadas. Já imaginava o bule fumegando vapor de café fresquinho, pousado sobre a toalha de renda na mesa da sala, próxima à janela. Imaginava-se saboreando o café de olhos fechados, sentindo no rosto o calor gostoso da luz que entrava filtrada pelas folhas de uma amendoeira brincalhona. Achara-o lindo, com suas cores verde e branca, ornamentado com ramalhetes dourados; desses bules bojudos na base com bico elegantemente recurvado e asa delicada. Cerâmica da década de 60, made in Brazil. Um encanto!

Leveza... nunca perca a leveza...

Porém no fim da tarde chegou a gripe, ou seja lá o que fez com que o rapaz ardesse sob seus olhos preocupados. A febre e aquele medo antigo, de não estar a altura da responsabilidade, de não ser capaz. Jamais superara aquele medo que nascera, ou que pelo menos se manifestara, no momento da chegada do rapaz, junto com com o líquido que escorrera pelas suas coxas antes mesmo de perceber a dor da primeira contração. Acostumara a amordaçar aquele sentimento para que não precisasse pedir muito, para que não precisasse pedir quase nada. Para ser sempre interessante, divertida, leve. Acostumara a amordaçar aquele sentimento junto com tantos outros, incômodos, que encarcerava dentro do peito e que só gritavam à noite, nas horas de insônia, quando, abraçada aos travesseiros, se enrolava no edredon como em uma camisa de força.

Com a febre veio o medo, a solidão e a consciência da necessidade de dividir também aquilo. A necessidade de ouvir a voz tranqüilizadora e afetuosa do homem amado; porque amava. Veio a febre e com ela a necessidade de ousar uma nova etapa, de ousar algo que evitara fazer durante os últimos anos: pedir, quase exigir o que dava com prazer, o que achava natural dar.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Invisível

Você não sufoca ninguem, dizia C... chega a ser quase invisível!
Não lembrava bem quando aquilo começou, devia ser muito pequena! A... falava sem parar, entoava uma cantilena, uma ladainha, engrenava uma corrente de lamentações, cantava a infância que não teve, de como tinha de fazer tudo sozinha, da vontade de sumir! -Um dia eu sumo e vocês não me encontram mais! Aquilo ia crescendo; a irritação, a indignação, o tom de voz... nesses momentos era melhor não chamar a atenção.
Invisível, dizia C... Devia ser assim que aquilo começou, embora não lembrasse bem!
...
Ele compunha: deitava, levantava, andava, pegava o violão, largava o violão, voltava a pegar e dedilhava insistentemente um trecho da música, se debruçava sobre o instrumento e escrevia algo em uma folha de papel. De onde estava não conseguia ler o que ele escrevia. Enroscada no canto da cama, abraçada em travesseiros, tentava respirar baixo e conter os ruídos incômodos do seu estômago. Por vezes cochilava, embora sem distrair daquele corpo que trabalhava. Sem distrair do homem, da pele, veias, pêlos, cheiro; daquele corpo que se movimentava febrilmente, apaixonadamente. Por vezes ele se afastava do quarto e ela ouvia atenta os passos e o barulho do papel sacudido nervosamente. Muito, muito atenta media a distância pela intensidade dos sons, para se certificar que ele ainda estaria dentro da zona de segurança, o perímetro que permitiria que o alcançasse com um salto e alguns passos rápidos, para impedi-lo de partir... Impedi-lo de partir!
Então ele voltava... por vezes seus olhares se encontravam e ela esboçava alívio em um discreto sorriso, discreto o suficiente para não perturbá-lo.
Você não sufoca, disse C... no dia em que o pranto a encontrou fora de hora e de lugar. Pensava nas palavras de C..., palavras que desde então repetia como um mantra, como uma prece, para acalmar o terror que sentia de que passos levassem o calor, o sentido, o amor; pensava nas palavras de C...