Contemplando meus próprios pés que descansam além do livro e da xícara, a
pequena pitangueira na janela iluminada, gatos jogados nas áreas de sol, construo
um domingo de paz e conforto, mas sem o poder de desconectá-lo daqueles tantos
domingos em que você lia na poltrona perto da janela com a luz branca
abraçando tudo e se movendo vagarosamente ao longo da sala, fazendo com que eu
ajustasse a cortina em algum momento da manhã. Me percebo sentada no tamboretee
à frente, ou no sofá ao lado fotografando cada detalhe da cena, seus pés
esticados e cruzados por sobre o braço do sofá, a barriga dobrada por sobre a
bermuda de dormir, o umbigo mais escuro, os joelhos ossudos proeminentes, as panturrilhas parcialmente escondidas, as mãos segurando o livro, um braço apoiado
na poltrona e o outro sobre a barriga, os mamilos, o peito, os ombros, o rosto
com a barba por fazer e óculos displicentemente colocados, as dobras da pele
das bochechas, a cova do queixo, me percebo fotografando ou tentando desenhar
tudo enquanto você move os pés e troca de posição, talvez inconsciente da minha
presença, talvez tentando causar um incômodo proposital, algo que sempre
suspeitei em tantas diferentes situações, mas que nunca soube se vinha de dentro
de mim, ou de você. Tomada da moleza do
meio dia, ouvindo um violão do quarto ao lado e passarinhos em algum lugar fora
da janela, ainda percebo o momento em que você abaixa o livro, os óculos, e os
pés, e me olha imaginando se já estou com fome, para propor o almoço ou um café
da manhã tardio. E eu já alegre de espionar seu sossego dominical, sinto uma
onda ainda maior de alegria quando seus olhos escuros e sua atenção se voltam
pra mim. A cena desaparece, volto ao meu quarto, aos meus pés, aos meus gatos
à minha janela, às minhas cortinas, ao meu sossego.
Observação: Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais terá sido (ou não) mera coincidência!
domingo, 29 de julho de 2018
sábado, 13 de janeiro de 2018
Chuva na roseira
Foi na tarde antes da chuva. Ainda estava quente quando ela
chegou apertando o peito e a garganta, fazendo doer à beira do insuportável, irrompendo
intempestivamente, barulhenta, de assalto. Tão indesejada, temida, e detestada,
a saudade. E íamos mergulhando novamente no escuro da falta e da desesperança. Porém
alguma de nós queria tentar algo diferente que deve ter lido ou ouvido em algum
lugar, já que andávamos buscando conhecer formas de se lidar com a visitante. Vamos
ouvi-la, disse. Vamos observá-la, essa perniciosa. Já faz tanto tempo que ela
não perde uma oportunidade de nos atacar, tantos anos. Mas não é nossa culpa. Quando
apareceu pela primeira vez éramos ainda tão pouco experientes e não havia quem
pudesse nos orientar a ouvi-la. Ela sempre chega assim, dolorida, então por puro
medo aprendemos a fugir dela, fugir sempre, de qualquer forma, sem refletir
sobre o caminho, apenas impulsos de fuga. Mas já estamos tergiversando aqui
nessa conversa, voltemos à visita. Como estava dizendo, uma de nós decidiu que dessa
vez haveríamos de nos conter e prestar atenção nela. Do que ela reclamava? Por
que gritava tanto? O que dizia? Apenas seguramos a linha, nós outras, e a
observamos. Ela girava e girava fazendo ventania, trovoada e fogo. Girava do
passado para o futuro, do futuro para o passado. Andava apavorada com o
presente, a pobre, detestava ter perdido o que passou, detestava a sensação de que
qualquer construção presente viraria passado no futuro, se desintegraria.
Estava apavorada com a ideia do paraíso perdido, porque qualquer paraíso seria
inevitavelmente perdido. Recusava o presente, nessa recusa ora brigava, bufava,
girava, gritava e esperneava, ora quedava sem forças apenas para recomeçar logo
adiante. Não era bonito de ver. Era assustador. Mas como combinado apenas observamos.
Foi quando começou a chuva, e o cheiro da chuva. Respiramos fundo bem devagar para
sentirmos, para ouvirmos as gotinhas ritmadas, tamborilantes, frescas. Por
alguns momentos esquecemos a visitante, e quando a olhamos novamente ela estava
em choque porque não fugimos, ela não precisava mais nos perseguir, não precisava
mais espernear, foi parando aos pouquinhos de girar, foi parando aos
pouquinhos, e sentia a chuva, e nos olhava, e assegurávamos que a chuva era boa.
Suas pupilas foram normalizando, ela quedou em silêncio ali, no que estava
acontecendo, a brisa, o cheiro, as gotas...
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