Escrevia ao lado do janelão de um dos quartos, no apartamento onde
vivia fazia quase quinze anos. A poltrona antiga onde se sentava estava desfiada
e puída pela ação dos seus gatos e cheirava levemente a vinagre. O computador
estava em cima de um tipo de almofada que recebera de
brinde ao comprar pacotes de ração, e que aparentemente havia sido projetada por alguém
justamente para apoiar um laptop. O cachorro dormia na cama ao lado, onde a
velha senhora estava sentada assistindo a uma novela coreana. Havia o som
irritante da TV e um aroma distante do xixi que a cachorra havia feito sobre os
tacos do chão, e que permanecia por mais que houvesse sido meticulosamente
limpo. Pensou no quanto seria bom tolerar perfumes, para poder simplesmente
usá-los diluídos na limpeza dos tacos, porém os perfumes lhe causavam fortes
dores de cabeça.
Alguém se divertia batendo uma bola na parede alguns andares
abaixo. A desagradável vibração provocada pelas batidas fazia contraponto ao
delicioso burburinho dos passarinhos que se preparavam para encerrar o dia. Apesar
dos passarinhos, pelejava para não ser tomada pelo mal humor. Levantou e acendeu
a luz, já que a luminosidade diminuía rapidamente naquele entardecer. Pensou no
dia anterior, um feriado. Tinha sido convidada para um lançamento de livro. Entre
leituras de trechos e taças de espumante, a amiga com quem fora havia comentado
sobre ter caído na conversa de “pode deixar que o cachorrinho é meu, vou cuidar
dele e levá-lo para minha asa quando me mudar”. A amiga reclamava que mesmo agora,
com as filhas já crescidas, precisava brigar pelo seu direito de sair e voltar
na hora que quisesse, sem ter que ficar presa cuidando da neta canina, e emendou
com o estranhamento que sentia pela filha mais velha, já casada, estar limitando
a sua tendência em interferir, com a melhor das intenções, no negócio que havia
montado com o marido.
Ao mesmo tempo em que ouvia, não conseguia deixar de pensar em como havia entrado na mesma história de cachorrinho; em como fora estranho se acostumar ao fato do filho e a nora terem uma vida na qual ela não estava totalmente inserida; e em como de vez em quando recebia lembretes meio impacientes de que sua interferência nos assuntos dos dois não era bem-vinda, a menos que fosse solicitada.
Assim como sua amiga, sentia-se ora injustamente privada
de liberdade, ora indevidamente despojada do que acreditava ainda serem suas
funções maternas. E no seu caso, com relação à ingerência sobre o seu tempo,
havia também a questão da sua mãe, que que precisara ser levada para a sua casa,
por estar demenciando. Para estar com a amiga no dia anterior, havia chamado
uma acompanhante para a velha senhora. Quando achou que finalmente estaria dona
do seu tempo, encontrava-se tão presa quanto antes.
Após os autógrafos, decidiram sentar-se em um café para
continuar com a conversa. No cinema ao lado estava programado um festival com
tema de halloween, e nos letreiros anunciada uma sessão de Rock Horror Show para
sexta à meia-noite. O anúncio a projetou na velocidade de segundos a algumas
décadas passadas, quando queria muito assistir a Rock Horror Show, em uma
sessão de meia-noite, naquela mesma sala de cinema. Como era tarde e estava sem
companhia, os pais haviam decidido ir com ela, ainda que fosse um filme que não
os interessasse nenhum pouco, e que não tivessem hábito de sair com ela, e
muito menos de ir ao cinema. Lembrava de como havia se vestido de preto, cor
favorita na época, e ido feliz participar da sessão, na surpreendente companhia
dos dois. Aquela lembrança da juventude a fez sorrir.
Terminou o chocolate quente que estava tomando, e que estava
achando delicioso apesar de preferir o café que não se atreveria a tomar àquela
hora da noite. Deixou a amiga em um restaurante peruano onde ela iria encontrar
com outras pessoas e voltou para casa. Foi recebida com alegria pelos animaizinhos. Agradeceu
à cuidadora, deu boa noite para a velha que assistia TV já com os olhos
pesados, e foi se preparar para dormir. Um dos cachorros, que a essa altura estava
na sua cama, soltou um suspiro de pura satisfação quando recebeu um carinho entre
as orelhas na hora em que ela se deitou ao seu lado, após ter desligado a TV no
quarto da mãe que já dormia. Abraçou um travesseiro e pensou que talvez a vida
fosse isso mesmo; cavar momentos de liberdade e receber amor e afeto de criaturas
com as quais não havia exatamente planejado estar.
A lembrança desses acontecimentos do dia anterior libertou-a
de qualquer resquício de mal humor. Pousou o computador na escrivaninha, fez
festinha no cachorro, e chamou a velha senhora para jantar. Mais tarde
continuaria o texto que havia começado a escrever.