Vou começar por aquela sexta-feira de abril, 9 de abril, em que ele entrou na cozinha dizendo que estava de carona. Claro que alguma coisa em mim percebeu imediatamente, estranho isso, chegar dizendo que está de carona...
Estava sentada na mesa da cozinha e ele entrou. João não estava lá, João nunca estava. Claro que percebia isso, que João nunca estava, mas tenho esse péssimo hábito, na verdade mais um cansaço, um cansaço de mudar alguma coisa.
João nunca estava, eu estava sentada na mesa da cozinha, ele entrou, percebeu que o olhava como se o reconhecesse, seus olhos se acenderam, eu vi suas acompanhantes, desviei o olhar, ele disse que estava de carona.
Quando eu era adolescente Irene, minha grande amiga, ganhou um irmãozinho que tinha olhos de vazio. Era um bebê bonitinho, mas olhava como se não visse. Anos depois descobriram que era autista. Não se sabia direito o que era, chegaram a culpar as mães por causar aquilo com a sua falta de afeto, houve até um filme, alguém se lembra? Nunca esqueci aquele olhar de vazio, posso vê-lo como se estivesse na minha frente. Vi esse olhar algumas vezes ao longo da vida, um olhar de nada. Marcos tinha um olhar semelhante, olhar de nada, só que os olhos se acendiam para mim. Vi seus olhos acenderem quando estava na cozinha e ainda os vi acenderem e apagarem algumas vezes naquele dia. Ângela também viu, chegou a comentar comigo que “os olhos dele brilham quando você está na frente”. O comentário veio depois de eu ter dito a ela que havia me apaixonado. Havia me apaixonado ali em algum momento, talvez ainda na cozinha, talvez na sala quando conversávamos, talvez quando eu percebi que ele me seguia pela casa, talvez mais tarde, no sofá, quando cantávamos...
Bom estar contando essa história, bom para que eu possa lembrar sempre o motivo de ter ignorado a estranheza da frase sobre a carona, de ter ignorado o comportamento nervoso de uma de suas acompanhantes, a que vinha logo atrás dele, de ter ignorado diversas coisas estranhas desde então. Bom para lembrar que essa ignorância, santa e muitas vezes deliberada ignorância me permitiu viver durante muitos anos uma grande história de amor com toda a felicidade, a tristeza, a paz, a intranquilidade; com todos os componentes de uma grande história de amor. Comecei por aquele dia de abril porque pretendo contá-la aqui, entremeada de outras postagens, de outros assuntos, pretendo contá-la aqui sempre que tiver vontade, a minha novela...
Não o vi durante os próximos meses, não com meus olhos, mas João nunca estava e aquele olhar que se acendia para mim, aquela conversa gostosa, aquelas mãos, me fizeram companhia até nos encontrarmos de novo.
Foi em junho, faltava uma semana para o dia dos namorados...